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Soluções para a recuperação do agronegócio

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Palestra proferida no 2º Seminário de Mato Grosso do Sul em Dourados, promovido pelo IBAJUD em 04.07.2025.

CAVALLI, Cássio. Soluções para a recuperação do agronegócio. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 3, n. 40, p. 1-6, julho/2025. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br.

Nos debates acerca das recentes alterações promovidas na Lei 11.101/2005 pela Lei 14.112/2020, especialmente no tocante à recuperação judicial do produtor rural, é recorrente a crítica segundo a qual, ao estabelecer cinco novas hipóteses de créditos não sujeitos, total ou parcialmente, aos efeitos da recuperação judicial, o legislador teria enfraquecido consideravelmente o instituto da recuperação judicial do produtor rural, comprometendo de maneira significativa sua eficácia prática.

No entanto, parece-me que as novas hipóteses não são tão restritivas quanto parecem, tanto em casos de recuperação judicial e mormente em casos de recuperação extrajudicial, às quais são inaplicáveis.

As cinco novas hipóteses de créditos não sujeitos à recuperação judicial do produtor rural, introduzidas pela Lei 14.112/2020 na Lei 11.101/2005, são as seguintes:

I.          Primeira hipótese de não sujeição: Os créditos decorrentes de ato cooperativo praticados na forma do art. 79 da Lei 5.764/1971.

Conforme se lê no art. 6º, § 13, da Lei 11.101/2005: “Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971 [...]”.

Os atos cooperativos não se sujeitam à recuperação judicial para fins do art. 6º da Lei 11.101/2005. O parágrafo interpreta-se pelo caput, de modo que esta hipótese de não sujeição se limita apenas à suspensão da execução ou arresto de que trata o caput do art. 6º da Lei 11.101/2005. Logo, este crédito pode ser alterado pelos termos do plano de recuperação judicial. Para que a eventual execução do crédito decorrente do ato cooperativo não seja suspensa, o ato deve ter sido praticado na forma do art. 79 da Lei 5.764/1971, para a consecução dos objetivos sociais da sociedade cooperativa. Se o ato violar os objetivos sociais da cooperativa, terá sido praticado em degeneração do cooperativismo, caso em que, além de nulo, sujeitar-se-á integralmente à suspensão decorrente do deferimento do processamento da recuperação judicial.

Compete ao juízo recuperacional escrutinar o ato para, com base nas provas e documentos do processo, determinar se observam o preceito legal contido no art. 79 da Lei 5.764/1971, isto é, se foram praticados para a consecução dos objetivos da sociedade cooperativa, para, assim, determinar se estão sujeitos à recuperação judicial.

II.          Segunda hipótese de não sujeição: Os créditos decorrentes da atividade rural não incluídos na documentação fiscal do produtor rural.

Assim, lê-se no art. 49, § 6º, da Lei 11.101/2005: “Nas hipóteses de que tratam os §§ 2º[1] e 3º[2] do art. 48 desta Lei, somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que decorram exclusivamente da atividade rural e estejam discriminados nos documentos a que se referem os citados parágrafos, ainda que não vencidos.”

Sujeitam-se à recuperação judicial do produtor rural todos os créditos que decorram da atividade rural que estejam relacionados conforme os §§ 2º e 3º do art. 48 da Lei 11.101/2005.

Em exceção à regra geral do art. 49, caput, da Lei 11.101/2005, segundo a qual sujeitam-se à recuperação judicial todos os créditos existentes ao tempo do pedido, o § 6º do art. 49 estabelece que os créditos precisam decorrer da atividade rural e, também, estar relacionados em seus documentos fiscais. Daí a importância de se confeccionarem ou se retificarem tais documentos fiscais antes do pedido de recuperação judicial. A norma em comento possui aparente antinomia com a do caput do art. 49 da Lei 11.101/2005, pois sua interpretação literal permitiria ao produtor rural escolher quais créditos submetem-se à recuperação judicial e quais não. Assim, para evitar violação à par condicio creditorum, presumem-se sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes ao tempo do pedido. Caso se verifique algum crédito não relacionado corretamente, o juízo da recuperação judicial pode determinar a retificação dos documentos fiscais a que aludem os §§ 2º e 3] do art. 48 da Lei 11.101/2005. Ademais, nos termos do art. 8º da Lei 11.101/2005, qualquer credor pode suscitar a retificação dos referidos documentos ao juízo recuperacional.

Além do aspecto formal, a hipótese de exclusão a que se refere o § 6º do art. 49 da Lei 11.101/2005 determina que os créditos devem decorrer exclusivamente da atividade rural. Por isso, a recuperação judicial deve ser de produtor rural. Se, além da produção rural, a atividade envolver também atividade comercial ou industrial, como o depósito ou o beneficiamento de grãos, não se aplica a exclusão a que alude o § 6º do art. 49 da Lei 11.101/2005.

III.          Terceira hipótese de não sujeição: Art. 49, §§ 8º e 7º, da Lei 11.101/2005: os créditos a que aludem os arts. 14[3] e 21[4] da Lei 4.829, de 5 de novembro de 1965, que tenham sido renegociados na forma da Lei 4.829/1965.

Conforme se lê no § 8º do art. 49, “Estarão sujeitos à recuperação judicial os recursos de que trata o § 7º deste artigo que não tenham sido objeto de renegociação entre o devedor e a instituição financeira antes do pedido de recuperação judicial, na forma de ato do Poder Executivo.” E no § 7º do art. 49: “Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os recursos controlados e abrangidos nos termos dos arts. 14[5] e 21[6] da Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965.”

Isto é, sujeitam-se à recuperação judicial os créditos decorrentes de financiamento concedido nos termos dos arts. 14 e 21 da Lei 4.829/1965. Porém, se tais créditos tiverem sido renegociados nos termos da Lei 4.829/1965, não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial.

O § 7º do art. 49 interpreta-se a partir do § 8º do art. 49. Desse modo, se os créditos a que aludem os arts. 14 e 21 da Lei 4.829/1965 não tiverem sido renegociados, sujeitam-se à recuperação judicial. Se tiverem sido renegociados por qualquer modo que não os prescritos na Lei 4.829/1965, também se sujeitam. Apenas se tiverem sido renegociados nos estritos termos da Lei 4.829/1965, não se sujeitam à recuperação judicial.

Compete ao juízo recuperacional verificar, com base nos documentos e provas do processo, se a renegociação ocorreu na forma da Lei 4.829/1965, ou se, ao contrário, ocorreu à sua revelia, caso em que os créditos, ainda que renegociados, sujeitam-se à recuperação judicial.

IV.          Quarta hipótese de não sujeição: a dívida constituída nos três anos anteriores ao pedido de recuperação judicial contraída para a aquisição de propriedade rural.

 Conforme dispõe o art. 49, § 9º: “Não se enquadrará nos créditos referidos no caput deste artigo aquele relativo à dívida constituída nos 3 (três) últimos anos anteriores ao pedido de recuperação judicial, que tenha sido contraída com a finalidade de aquisição de propriedades rurais, bem como as respectivas garantias.”

A hipótese de exclusão parece ser inócua, ante a difundida prática de se pactuar a alienação fiduciária de imóvel no financiamento para sua aquisição. Se não tiver sido pactuada a alienação fiduciária, o crédito não se sujeita à recuperação judicial mesmo assim. Porém, aplica-se à espécie a mesma restrição do § 3º do art. 49 da Lei 11.101/2005, que proíbe a retomada de bens essenciais à atividade do produtor rural durante a suspensão de que trata o art. 6º da Lei 11.101/2005. Do contrário, estar-se-ia a prever hipótese de crédito quirografário com maior preferência do que a do crédito garantido por alienação fiduciária, o que é inconcebível. A regra do § 6º do art. 49 da Lei 11.101/2005, ademais, aplica-se apenas ao imóvel adquirido, não se admitindo que sua execução atinja outros bens do produtor rural, sob pena da violação a par condicio creditorum.

V.          Quinta hipótese de não sujeição ao efeito da suspensão da execução ou arresto: o crédito incorporado à CPR com liquidação física, sobre os grãos infungibilizados pela CPR.

Dispõe o art. 11 da Lei 8.929/1994, “Não se sujeitarão aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto.”

Não se sujeita à recuperação judicial do produtor rural o crédito incorporado à CPR com liquidação física ou barter, exclusivamente com relação aos bens da produção rural que tenham sido infungibilizados na CPR. Isto é, não se trata de qualquer grão, mas do grão que cedularmente tenha sido infungibilizado. O credor não pode agir contra os bens do patrimônio geral do devedor, nem mesmo os que tenham a mesma qualidade dos bens descritos na CPR. É ônus do credor comprovar que o bem descrito na CPR é aquele que pretende arrestar. Sem esta prova, sujeitam-se à recuperação judicial os créditos incorporados à CPR. Por isso, em caso de quebra de safra, por força maior ou caso fortuito, o crédito sujeita-se à recuperação judicial.[7]

VI.          Não aplicação dos dispositivos à recuperação extrajudicial.

A literalidade dos dispositivos mencionados acima não deixa dúvida de que se tratam de normas de não sujeição, parcial ou total, aos efeitos da recuperação judicial do produtor rural. Portanto, as alterações legislativas acima descritas restringem-se explicitamente à recuperação judicial, sem incidirem nos processos de recuperação extrajudicial ou falência. Conforme Carlos Maximiliano, “Tome como ponto de partida o fato de não ser lícito aplicar uma norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi feita.”[8]

Com efeito, não se pode afirmar que o propósito da legislação tenha sido inviabilizar completamente a recuperação judicial no setor do agronegócio. Parece ter havido, na verdade, uma intenção clara do legislador de fomentar a utilização da recuperação extrajudicial pelos produtores rurais, oferecendo uma alternativa mais célere e menos gravosa em comparação ao procedimento judicial tradicional. Logo, é possível concluir que o propósito do legislador não foi direcionado à recuperação extrajudicial nem à falência.

Mais do que isso, como a recuperação extrajudicial pode ser convertida em recuperação judicial, e esta, convolada em falência, os dispositivos devem ser interpretados nesse contexto.

Assim, os créditos a que se referem os artigos acima transcritos não se sujeitam à recuperação judicial, mas inequivocamente se sujeitam à recuperação extrajudicial e à falência.

Conforme o § 1º do art. 163 da Lei 11.101/2005, o plano de recuperação extrajudicial alcança todos os créditos abrangidos, quais sejam, “a totalidade de uma ou mais espécies de créditos previstos no art. 83, incisos II, IV, V, VI e VIII do caput, desta Lei, ou grupo de credores de mesma natureza e sujeito a semelhantes condições de pagamento, e, uma vez homologado, obriga a todos os credores das espécies por ele abrangidas, exclusivamente em relação aos créditos constituídos até a data do pedido de homologação.”

Nos termos do § 7º do art. 163 da Lei 11.101/2005, protocolado o pedido de homologação de plano de recuperação extrajudicial com 1/3 dos créditos abrangidos, terá o produtor rural o prazo de 90 dias para completar o quórum de mais da metade dos créditos de que trata o caput do art. 163 da Lei 11.101/2005.

Assim, suspendem-se as execuções e arrestos fundados nos créditos abrangidos, conforme se extrai de interpretação a contrário do § 4º do art. 161 da Lei 11.101/2005.

O crédito decorrente de ato cooperativo é classificado como quirografário ou com garantia real, nos termos do art. 83, II ou VI, da Lei 11.101/2005.

Os créditos decorrentes da atividade rural não incluídos na documentação fiscal do produtor rural são classificados como quirografário ou com garantia real, nos termos do art. 83, II ou VI, da Lei 11.101/2005.

Os créditos renegociados nos termos da Lei 4.829/1965 são quirografários ou com garantia real, nos termos do art. 83, II ou VI, da Lei 11.101/2005.

A dívida constituída nos três anos anteriores ao pedido de recuperação judicial contraída para a aquisição de propriedade rural será classificada como quirografário ou com garantia real, nos termos do art. 83, II ou VI, da Lei 11.101/2005.

O crédito incorporado à CPR com liquidação física ou barter, sobre os grãos infungibilizados pela CPR, será classificada como quirografário ou com garantia real, nos termos do art. 83, II ou VI, da Lei 11.101/2005.

 


[1] Art. 48, § 2º “No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.     (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020)”

[2] Art. 48, § 3º “Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020)”

[3] Art. 14. Os termos, prazos, juros e demais condições das operações de crédito rural, sob quaisquer de suas modalidades, serão estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, observadas as disposições legais específicas, não expressamente revogadas pela presente Lei, inclusive o favorecimento previsto no art. 4º, inciso IX, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, ficando revogado o art. 4º do Decreto-lei nº 2.611, de 20 de setembro de 1940.

[4] Art. 21.  As instituições referidas nos incisos II e III do caput do art. 7º, na alínea “c” do inciso I do § 1º do art. 7º e nas alíneas “a”, “b”, “c” e “e” do inciso II do § 1º do art. 7º desta Lei manterão aplicados recursos no crédito rural, observadas a forma e as condições estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

§ 1º As instituições referidas no caput deste artigo que apresentarem deficiência na aplicação de recursos no período de 1º de julho de 2016 a 30 de junho de 2017 recolherão as somas correspondentes em depósito no Banco Central do Brasil, remuneradas na forma estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional, para aplicação nos fins previstos nesta Lei.  (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

§ 2º As instituições referidas no caput deste artigo que apresentarem deficiência na aplicação de recursos estarão sujeitas, a partir de 1º de julho de 2018, relativamente ao ano agrícola iniciado em 1º de julho de 2017, aos custos financeiros estabelecidos pelo Banco Central do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

[5] Art. 14. Os termos, prazos, juros e demais condições das operações de crédito rural, sob quaisquer de suas modalidades, serão estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, observadas as disposições legais específicas, não expressamente revogadas pela presente Lei, inclusive o favorecimento previsto no art. 4º, inciso IX, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, ficando revogado o art. 4º do Decreto-lei nº 2.611, de 20 de setembro de 1940.

[6] Art. 21.  As instituições referidas nos incisos II e III do caput do art. 7º, na alínea “c” do inciso I do § 1º do art. 7º e nas alíneas “a”, “b”, “c” e “e” do inciso II do § 1º do art. 7º desta Lei manterão aplicados recursos no crédito rural, observadas a forma e as condições estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional. (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

§ 1º As instituições referidas no caput deste artigo que apresentarem deficiência na aplicação de recursos no período de 1º de julho de 2016 a 30 de junho de 2017 recolherão as somas correspondentes em depósito no Banco Central do Brasil, remuneradas na forma estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional, para aplicação nos fins previstos nesta Lei.  (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

§ 2º As instituições referidas no caput deste artigo que apresentarem deficiência na aplicação de recursos estarão sujeitas, a partir de 1º de julho de 2018, relativamente ao ano agrícola iniciado em 1º de julho de 2017, aos custos financeiros estabelecidos pelo Banco Central do Brasil. (Redação dada pela Lei nº 13.506, de 2017)

[7] Aqui, remeto ao quanto já escrevi no artigo CAVALLI, Cássio. Anotações sobre a cédula de produto rural e a norma de não-sujeição à recuperação judicial do produtor rural. Agenda Recuperacional (online), v. 1, n. 21, 2023.

[8] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito.  15.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 134.

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