Skip to content

O novo tratamento do ACC na falência e na recuperação judicial

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
6 min read

Table of Contents

Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado, árbitro e parecerista.
Referência ABNT para citação: CAVALLI, Cássio. O novo tratamento do ACC na falência e na recuperação judicial. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 2, p. 1-3, fev./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br e no Linkedin

A reforma da Lei 11.101/2005 (“LRF”) alterou a prioridade do crédito por adiantamento por contrato de câmbio (“ACC”) na falência e na recuperação judicial. Até a promulgação da Lei 14.112/2020, o ACC constituía uma hipótese de restituição em dinheiro prevista no art. 86, II, da LRF, que deveria ser satisfeita antes do pagamento dos créditos extraconcursais e dos créditos concursais, conforme a ordem de prioridades prevista no art. 149 da LRF.

A Lei 14.112/2020 alterou essa ordem de prioridades ao prever no inciso I-C do art. 84 da LRF que os “créditos em dinheiro objeto de restituição, conforme previsto no art. 86 desta Lei” constituem créditos extraconcursais, que devem ser pagos com precedência apenas sobre os créditos concursais. Bem concretamente, a nova previsão legislativa estabelece que as hipóteses de restituição em dinheiro listadas no art. 86 da LRF não são mais ranqueadas como restituições, pois foram rebaixadas para o nível de crédito extraconcursal. As consequências que decorrem desse rebaixamento são de várias ordens.

A principal delas é que o art. 84, I-C, da LRF revogou tacitamente o § 3º do art. 75 da Lei 4.728/1965, que dispunha: “No caso de falência ou concordata, o credor poderá pedir a restituição das importâncias adiantadas”. Isto é, o ACC não poderá mais ser objeto de pedido de restituição endereçado ao juízo falimentar, e deverá ser pago pelo administrador judicial, observada as ordens de preferência do art. 84 da LRF.

Com efeito, para os casos de falência e recuperação judicial ajuizados após 22 de janeiro de 2021, - isto é, após a entrada em vigor da Lei 14.112/2020, conforme dispõe seu art. 5º, § 1º, II, - não há mais a possibilidade jurídica de credor por ACC apresentar pedido de restituição ao juízo falimentar ou recuperacional. Nesse sentido, a nova legislação afastou parcialmente o entendimento consolidado na jurisprudência do STJ, que havia criado uma bifurcação procedimental para a cobrança do ACC enquanto crédito não sujeito, o qual, para ser cobrado da empresa recuperanda, deveria ser objeto de pedido de restituição ajuizado perante o juízo recuperacional, conquanto sua cobrança perante terceiros devesse ser feita mediante processo de execução.[i] Com a supressão legal da hipótese de pedido de restituição em dinheiro, resta apenas a via executiva para a cobrança do crédito por ACC tanto da recuperanda quanto dos coobrigados.

Diferentemente do quanto ocorria com o pedido de restituição, parece-me que a competência para processar a execução do ACC não é do juízo recuperacional, mas do juízo ao qual fora originalmente distribuída a ação executiva. Entretanto, apesar de o crédito por ACC continuar não sujeito à recuperação judicial, sua execução contra a empresa recuperanda poderá ser suspensa em determinadas hipóteses.

A primeira hipótese de suspensão da execução do ACC decorre do fato de que os encargos legais devidos pelo ACC constituem crédito sujeito à recuperação judicial, conforme o entendimento consolidado jurisprudencialmente.[ii] Portanto, somente o valor principal do crédito por ACC poderá ser objeto de execução, ao passo que juros, multas e outros encargos constituem créditos sujeitos que devem ser pagos na forma do plano de recuperação judicial. Por isso, a execução do crédito por ACC poderá ser suspensa contra a recuperanda até que sejam feitos os cálculos que distingam o valor dos encargos incidentes sobre o ACC para fins de habilitação.

A segunda hipótese de suspensão da execução do ACC encontra-se nas situações em que a excussão de bens da recuperanda poderá colocar em risco a preservação da empresa. Neste caso, se reconhecida a competência do juízo recuperacional para decidir sobre a destinação dos bens da recuperanda, este poderá obstar a continuação da execução, de modo análogo ao quanto orientava a jurisprudência anterior à reforma da LRF.[iii]

Esta é a interpretação que, a meu ver, melhor se coaduna com as recentes alterações da LRF, inclusive com a nova disciplina legal de mediação antecedente de que versa o art. 20-A da LRF, com suspensão de “litígios que envolverem credores não sujeitos à recuperação judicial, nos termos dos §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei, ou credores extraconcursais”.

---

[i] Nesse sentido, ver STJ, RCD no CC 156.717, Segunda Seção, j. 26.09.2018, v.u., rel. Maria Isabel Gallotti (julgando que “O art. 49, § 4º, da Lei 11.101/2005, estabelece que o crédito advindo de adiantamento de contrato de câmbio não está sujeito aos efeitos da recuperação judicial, ou seja, tem preferência sobre os demais, não sendo novado, nem sofrendo rateio. Para obter sua devolução, cabe, todavia, ao credor efetuar o pedido de restituição, conforme previsto no art. 86, inciso II, da mesma norma, ao qual faz referência o mencionado art. 49. 3. Ainda que a execução referente ao ACC deva ser conduzida pelo Juízo da Recuperação, na hipótese dos autos nenhum dos bens constritos pertence à pessoa jurídica suscitante, mas aos coobrigados no contrato, para os quais foi redirecionada a execução. 4. “A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória” (Súmula 581/STJ).”).

[ii] Assim, ver STJ, REsp 1.723.978, Terceira Turma, j. 22.03.2022, v.u., rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino (julgando “embargos à execução ajuizados em execução de título extrajudicial em razão de inadimplemento dos adiantamentos de contrato de câmbio - ACC nos quais se discute, no que interessa ao presente recurso, a inadequação da via eleita, por entender a recorrente que, ainda que os créditos estivessem excluídos dos efeitos da recuperação judicial pelo art. 49, §4º, da Lei 11.101/2005, a busca dos créditos deveria se dar por meio de pedido de restituição, nos termos do art. 86, II, da Lei 11.101/2005. 2. A Segunda Seção desta Corte, firmou entendimento no sentido de que, nos termos do que dispõe o art. 49, §4º, da Lei 11.101/2005, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial a importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento de contrato de câmbio para exportação, cabendo ao credor obter a sua devolução por meio de pedido de restituição, na forma do art. 86, II, da referida lei. 3. Nos termos do julgamento do RESP 1.810.447/SP, a Terceira Turma desta Corte firmou entendimento no sentido de que, ‘embora os arts. 49, § 4º, e 86, II, da Lei 11.101/05 estabeleçam a extraconcursalidade dos créditos referentes a adiantamento de contratos de câmbio, há de se notar que tais normas não dispõem, especificamente, quanto à destinação que deva ser conferida aos encargos incidentes sobre o montante adiantado ao exportador pela instituição financeira’ (Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 05.11.2019, DJe 22.11.2019). 4. Acórdão recorrido em dissonância com a jurisprudência desta Corte, segundo a qual o crédito referente ao efetivo adiantamento do contrato de câmbio deve ser objeto de pedido de restituição nos autos da recuperação judicial e os respectivos encargos reclamam habilitação no Quadro Geral de Credores, por estarem sujeitos ao regime especial, mostrando-se inadequada a execução direta.”).

[iii] Nesse sentido, ver STJ, REsp 1.810.447, Terceira Turma, j. 05.11.2019, m.v., rel. Min. Nancy Andrighi (decidindo que “O propósito recursal, além de verificar se houve negativa de prestação jurisdicional, é definir se os encargos derivados de adiantamento de contratos de câmbio se submetem aos efeitos da recuperação judicial da devedora. 3. Muito embora os arts. 49, § 4º, e 86, II, da Lei 11.101/05 estabeleçam a extraconcursalidade dos créditos referentes a adiantamento de contratos de câmbio, há de se notar que tais normas não dispõem, especificamente, quanto à destinação que deva ser conferida aos encargos incidentes sobre o montante adiantado ao exportador pela instituição financeira. 4. Inexistindo regra expressa a tratar da questão, a hermenêutica aconselha ao julgador que resolva a controvérsia de modo a garantir efetividade aos valores que o legislador privilegiou ao editar o diploma normativo. 5. Como é cediço, o objetivo primordial da recuperação judicial, estampado no art. 47 da Lei 11.101/05, é viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. 6. A sujeição dos valores impugnados aos efeitos do procedimento recuperacional é a medida que mais se coaduna à finalidade retro mencionada, pois permite que a empresa e seus credores, ao negociar as condições de pagamento, alcancem a melhor saída para a crise enfrentada.”).



Comments