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A reclassificação do crédito trabalhista cedido e a formação de mercado secundário de negociação de créditos trabalhistas na Lei 11.101/2005

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado consultor e parecerista.
Referência para citação: CAVALLI, Cássio. A reclassificação do crédito trabalhista cedido e a formação de mercado secundário de negociação de créditos trabalhistas na Lei 11.101/2005. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 5, p. 1-6, mar./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em:

A classe dos créditos trabalhistas é dotada de preferência de pagamento sobre os demais créditos, conforme o art. 83, I, da Lei 11.101/2005 ("LRF"), e a classificação é mantida mesmo caso haja cessão do crédito laboral. A reforma da LRF levada a cabo pela Lei 14.112/2020 revogou o § 4º do art. 83 da LRF e incluiu o § 5º, no qual se lê que "Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação." Assim, com a reforma, a LRF passou a adotar o princípio da fixação da classificação do crédito concursal (análogo ao princípío encontrado no direito holandês), segundo o qual, de regra, o crédito concursal mantém a sua classificação no concurso, inclusive no caso de vir a ser cedido a terceiro. Ante as graves injustiças e ineficiências que podem decorrer da reclassificação do crédito, ela só se admite em circunstâncias excepcionais, como a encontrada no art. 83, VIII, 'b', da LRF.

Antes da reforma da Lei 14.112/2020, a LRF continha norma de reclassificação ex lege dos créditos trabalhistas (e os créditos a estes equiparados) para créditos quirografários em caso de cessão a terceiros. Era o quanto se lia no art. 83, § 4º, da LRF: “[o]s créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários.”

Na doutrina, a classificação preferencial do crédito trabalhista era justificada como meio de tutela do credor trabalhista, que deveria ser protegido em razão do caráter alimentar de seu crédito. No entanto, o crédito perderia este caráter alimentar em caso de cessão a terceiro, que adquiriria o crédito como mero investimento pecuniário. Daí porque entendia-se que o crédito trabalhista deveria ser reclassificado para quirografário em caso de cessão.[1] Com efeito, a preferência do crédito trabalhista ficava a depender de quem o exercesse: “os créditos trabalhistas gozam de determinados privilégios, desde que os direitos deles decorrentes sejam exercidos pelo próprio empregado credor. Cedido o direito a terceiro, o crédito torna-se quirografário.”[2]

A jurisprudência formada ao tempo da vigência do art. 83, § 4º, da LRF seguia o mesmo rumo da lei e doutrina. Assim, ao decidir acerca da classificação na falência de crédito trabalhista que fora cedido, consignou o Min. Ricardo Villas Bôas Cueva em detalhado aresto de sua relatoria que:

“o crédito trabalhista tem natureza jurídica própria, traz em seu bojo o caráter alimentar e tem privilégios em relação a outros créditos. No entanto, com a sua cessão a terceiro interessado, essa característica se desnatura, o crédito perde sua característica protecionista, pois é transferido a outrem estranho à relação processual trabalhista. Nessas hipóteses, a transferência do crédito então trabalhista passa a ter natureza civil e não poderá contar com os privilégios que a legislação laboral lhe concede. Ademais, da Lei de Recuperação de Empresas e Falência denota-se que a cessão do crédito trabalhista a terceiro retira seu privilégio, tornando-o quirografário, o que claramente demonstra a intenção do legislador de afastar de empregados necessitados a compra de seus créditos trabalhistas por valores depreciados.” [3]

De fato, a reclassificação ex lege do crédito cedido afastava potenciais adquirentes desses créditos, a ponto de jamais se ter formado um mercado ativo de negociação destes créditos. Ademais, a norma de reclassificação do crédito trabalhista cedido aplicava-se tanto em caso de falência, quanto de recuperação, judicial ou extrajudicial, e, também, de processo de execução. Nesse sentido, decidiu o STJ, pela segura relatoria da Min. Nancy Andrighi, que “[c]ompete à Justiça Comum processar e julgar ação de cobrança de débito oriundo de cessão de direitos trabalhistas. - Irrelevante para definir a competência a origem do direito objeto da cessão.”[4]

A descrição acima sintetiza, em linhas gerais, os argumentos da doutrina e da jurisprudência sobre a norma de reclassificação do crédito trabalhista cedido. Entretanto, se analisada mais de perto, o intérprete encontrará na reclassificação ex lege do crédito trabalhista cedido muito mais, a começar pela incoerência entre o objetivo almejado pela norma e o resultado efetivo causado pela sua aplicação. De fato, a pretexto de tutelar o credor trabalhista, a norma de reclassificação do crédito lhe impunha pesados dissabores e dava origem à grande injustiça e ineficiência.

Em primeiro lugar, a norma de reclassificação por cessão atuava contrariamente ao seus objetivos declarados de tutelar o credor trabalhista. Enquanto titular do direito disponível de crédito, o credor deve poder escolher como exercerá sua posição jurídica. Pode preferir aguardar o pagamento pela massa ou, ao invés de aguardar, pode preferir mobilizar seu crédito para obter recursos no presente, sem ter que esperar pelo pagamento futuro, evitando as despesas para acompanhar o processo e os riscos do processo falimentar ou recuperacional. A escolha deveria ser do titular do crédito. Porém, a reclassificação da preferência do crédito em caso de cessão limitava o âmbito de escolha do credor trabalhista, pois o rebaixamento automático do crédito era refletido na diminuição do valor pago ao cedente. Afinal, o cessionário está disposto a pagar pelo crédito cedido um valor que reflita o valor presente da posição na fila de credores que o crédito adquirido lhe assegura. Com isso, a norma de reclassificação impunha uma perda ao credor trabalhista que cedesse seu crédito.

Essa perda era imposta precisamente ao credor trabalhista que tivesse maior premência em receber dinheiro para, supostamente, arcar com despesas alimentares de subsistência. O credor trabalhista que não tivesse a premência alimentar poderia aguardar o pagamento futuro. Ou seja, para tutelar créditos de natureza alimentar, a norma de reclassificação prejudicava precisamente os titulares de crédito que necessitavam de liquidez imediata para se alimentarem. A incoerência e a injustiça da norma saltam aos olhos. O intérprete deve sempre estar atento a normas desta espécie que são, no sentido vernacular, quase hipócritas, pois, a pretexto de tutelar um interesse, dispensam-lhe um tratamento contrário e lhe impõem pesadas perdas.

A norma de reclassificação do crédito trabalhista cedido evidentemente prejudicava o cedente do crédito trabalhista. Esse prejuízo imposto ao cedente correspondia a ganho de outros, em um resultado de soma zero. Quem se beneficiava da perda decorrente da reclassificação ex lege? Não era o cedente nem o cessionário. Eram os demais credores trabalhistas, especialmente aqueles que dispusessem de recursos para se alimentarem e pudessem aguardar o pagamento na falência ou na recuperação. Para demonstrar o argumento, imagine-se uma falência com dez credores trabalhistas listados pelo valor de $120 cada, perfazendo o total de $1200 na classe, e cujos ativos fossem suficientes para pagar apenas $100 a cada credor trabalhista. Caso um credor trabalhista cedesse seu crédito, em razão da reclassificação imposta a este crédito, a classe de credores trabalhistas passaria a contar apenas com nove credores trabalhistas, os quais passariam a ganhar $111,11 de dividendo. Ou seja, a norma de reclassificação do crédito trabalhista cedido outorgava um ganho injusto (e que passou desapercebido pela integralidade da doutrina especializada) aos demais credores trabalhistas. Noutras palavras, a norma de reclassificação retirava valor do credor trabalhista que tivesse maior premência de obter recursos no presente para dar aos credores trabalhistas que não necessitavam tanto de recursos para fins alimentares. A norma de reclassificação tirava do pobre para dar aos não tão pobres assim. A injustiça da norma salta aos olhos.

O exemplo acima demonstra que o ganho decorrente da reclassificação do crédito trabalhista cedido era apropriado pelos demais credores trabalhistas, muitos dos quais credores equiparados aos trabalhistas por quantias até milionárias. A apropriação do valor pelos demais credores trabalhistas ajuda a demonstrar por que o cessionário pagaria um valor menor para adquirir o crédito trabalhista por cessão. Para demonstrar o argumento, imaginemos o exemplo de uma falência que teria recursos para pagar todos os credores da classe trabalhista e que contasse com dez credores quirografários no valor total de $1000, cada um pelo valor de $100. Após o pagamento dos credores trabalhistas, suponhamos que restassem apenas $1000 para a massa, valor suficiente para pagar todo o valor devido aos dez credores quirografários. Em caso de cessão de um crédito trabalhista no valor de $100, os demais credores trabalhistas se apropriariam do dividendo do cedente, como demonstrado acima. Porém, o cessionário passaria a listado na classe dos quirografários, que passaria a contar com onze credores, pelo valor total de $1100. Logo, os credores quirografários, que antes receberiam 100% dos seus créditos, foram diluídos com o ingresso do cessionário do crédito trabalhista, de modo que cada um dos credores quirografário passaria a receber apenas 90,9% dos seus créditos ($90,90). A perda, portanto, também era suportada pelos credores quirografários, diluídos pela reclassificação.

Este fato também demonstra porque os eventuais cessionários se dispunham a pagar menos pela aquisição de créditos trabalhistas: não era por serem avarentos investidores em busca de obter ganhos pecuniários às expensas do cedente trabalhista. Era apenas pelo fato de que adquiriam, por cessão, um direito a receber um valor muito menor do que o valor original do crédito que lhes fora cedido. No exemplo acima, o cessionário de crédito trabalhista adquiria um crédito correspondente ao direito de receber $90,90 na classe quirografária. Logo, este credor se disporia a pagar ao cedente trabalhista do crédito de $100 um valor presente calculado sobre estes $90,90.

Com efeito, a norma de reclassificação subtraía direitos do cedente do crédito trabalhista e dos demais credores quirografários, para repassar este valor aos demais credores trabalhistas que tivessem recursos suficientes para esperar o pagamento de seus créditos, agora acrescidos de parte do dividendo que fora subtraído do credor trabalhista mais necessitado. Essa irrefletida reorganização da distribuição de valores decorrente da reclassificação ex lege do crédito trabalhista cedido era uma grave distorção do sistema jurídico e fonte de grave injustiça aos credores trabalhistas mais necessitados.

Além de injusta, esta norma era fonte de severas ineficiências, pois a reclassificação do crédito cedido alterava as posições patrimoniais e políticas no quadro de credores e conturbava a condução dos procedimentos falimentares e recuperacionais. Darei apenas um exemplo dessas ineficiências. Um dos problemas centrais com os quais lida o direito concursal é a dificuldade que credores, inclusive trabalhistas, podem ter para agir coletivamente, cooperativamente, para tomar melhores decisões de alocação dos ativos do devedor e, assim, aumentar a recuperação de seus créditos. Uma dos meios empregados para coordenar a ação dos credores é o que eu denomino coletivização, que pode assumir várias formas, todas elas marcadas pelo fato de que todos credores são tratados como uma só entidade. Uma das formas que permite coletivizar interesses é a agregação de créditos (na terminologia que eu criei) por meio da cessão de créditos a um só interessado. Assim, por exemplo, se há um fundo de investimentos que veja valor em determinada forma de alocação de ativos do devedor, a qual, porém, conquanto seja a mais eficiente (preserve a empresa, p. ex.), pode ser de difícil implementação caso os credores trabalhistas necessitem de pagamentos imediatos que pressupõem a liquidação da empresa. Nesse caso, é desejável que os credores trabalhistas possam ceder seus créditos ao maior valor possível, ao mesmo tempo em que o fundo de investimentos possa adquiri-los para agregar os direitos patrimoniais e políticos de modo a poder tomas a decisão de alocar os ativos pelo seu maior valor.

A norma de reclassificação automática dos créditos trabalhistas cedidos constituía grande obstáculo à adoção de medidas eficientes de alocação de ativos. Com isso, perdiam todos: os credores trabalhistas, os empregados e investidores.

Mais do que isso, a norma de reclassificação do crédito trabalhista cedido impedia a formação de um mercado ativo de aquisição de créditos trabalhistas, o que subtraía das reestruturações uma importante ferramenta para maximizar valor de alocação de ativos e, assim, aumentar a satisfação dos créditos, inclusive trabalhistas.

Para evitar as injustiças e ineficiências acima apontadas, quando da elaboração do primeiro esboço de anteprojeto de reforma da Lei 11.101/2005 ainda no Ministério da Fazenda, por sugestão minha foi incluída no texto da reforma a disposição que acabava com a reclassificação automática de créditos trabalhistas cedidos. Esta sugestão foi mantida durante a tramitação legislativa do projeto e resultou na revogação do § 4º do art. 83 e na inclusão do § 5º no art. 83, no qual se lê: “Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação.”

Com efeito, para os fins classificação na ordem de pagamentos, o crédito trabalhista ou o crédito a este equiparado que for cedido não será reclassificado para fins de cobrança, falência, recuperação judicial e recuperação extrajudicial. Espero que a nova norma do § 5º do art. 83 da LRF incentive a formação de um mercado secundário ativo de negociação de créditos trabalhistas que permita aos credores trabalhistas cederem seus créditos por maior valor, evite as profundas injustiças distributivas que decorriam do regime anterior e promova a alocação eficiente dos ativos da empresa em crise, a bem da comunidade de credores e interessados na empresa.

[p.s.1: O tema abordado neste artigo constitui uma ilustração de que a disicplina das prioridades na ordem de pagamentos relaciona-se diretamente à justiça na distribuição de valores aos credores e interessados e, também, à eficiência na alocação de ativos do devedor. Com efeito, conforme seja disciplinada a ordem de prioridades na falência e na recuperação, diferente serão a justiça e a eficiência resultantes do procedimento. O tema das prioridades, portanto, situa-se no eixo central a partir do qual se desenvolve todo o direito concursal.]

[p.s.2: O risco que reclassificações de créditos impõem ao desenvolvimento do procedimento concursal recomenda que se adote o princípio da fixação (análogo ao encontrado no direito concursal holandês), segundo o qual, de regra, não devem ser reclassificados os créditos concursais, exceto em situações excepcionais nas quais se pretenda punir um credor em benefício de outros, como ocorre, por exemplo, na hipótese contida na atual redação do art. 83, VII, 'b', da LRF.]

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[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva. 2018, p. 330 (“A alteração da natureza do crédito se justifica, porém, em razão dos direitos dos terceiros. Ela decorre da perda do caráter alimentar do crédito em face do cessionário, que o adquire voluntariamente em razão de seu interesse pecuniário. [...] [C]onferiu a Lei direito prioritário aos créditos trabalhistas em decorrência da sua imprescindibilidade à subsistência daqueles que efetivamente desempenharam suas atividades sem obter remuneração. Perdida essa característica pela cessão do crédito, não se justificaria, em face dos demais credores não privilegiados, o tratamento diferenciado.”).

[2] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação de empresas e falências comentada. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005, p. 210.

[3] STJ, AgInt no Ag. em REsp 818.764, Terceira Turma, j. 07.06.2016, v.u., rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

[4] STJ, CC 20.148, Segunda Seção, j. 24.11.2004, m.v., rel. Min. Nancy Andrighi.

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