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A crônica de um impasse anunciado: os planos de credores na recuperação judicial

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP, advogado e parecerista.
Referência para citação: CAVALLI, Cássio. A crônica de um impasse anunciado: os planos de credores na recuperação judicial. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 11, p. 1-4, mar./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. e no Linkedin Acesso em:

A função do procedimento de recuperação judicial é superar impasses entre os credores e interessados de modo a promover a formação de consensos majoritários em torno de planos de recuperação da empresa. Quanto melhores as normas do procedimento, mais rapidamente se alcançará uma estrutura de capital sustentável, que é o objetivo final da recuperação judicial. A velocidade da solução recuperacional é a chave para recuperações bem-sucedidas, uma vez que empresas em crise são como que blocos de gelo derretendo (melting ice cubes), que perdem valor a cada dia a mais de demora do procedimento recuperacional. Por isso, a capacidade de superar impasses e de promover resoluções rápidas constituem duas variáveis fundamentais na avaliação da qualidade das disposições da Lei de Recuperação e Falências.

Até a reforma de 2020, o processo recuperacional regido pela LRF era sabidamente demorado, apesar de a LRF, em sua elaboração original, estabelecer prazos para apresentação do plano (em até 60 dias do deferimento, conforme o art. 53) e para a realização da assembleia (em até 150 dias do deferimento, conforme o art. 56, § 1º), sob a suposição de que a deliberação em assembleia ocorresse em um mesmo dia e que a negociação até a homologação do plano não excederia o prazo improrrogável de 180 dias (na redação original do art. 6º, § 4º). Na vida real, a duração dos processos recuperacionais excedia em muito os prazos legais. Era comum que processos demorassem anos até a instalação da assembleia e, uma vez instalada, que sucessivas suspensões postergassem a deliberação final por vários anos.

A Lei 14.112/2020 buscou lidar com esse problema. Porém, sem entender as causas da demora, restou ao legislador estabelecer mais prazos, como se previsões legais de prazo resolvessem a demora do procedimento recuperacional. Assim, a desmoralizada estatuição "em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias" do § 4º do art. 6º foi substituída pela previsão de que o prazo de 180 dias é "prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional". Seis por meia dúzia, pois se o improrrogável em hipótese alguma era prorrogável, com mais facilidade o será o prorrogável uma única vez, em caráter excepcional.

De igual modo, para evitar as intermináveis suspensões da assembleia, a Lei 14.112/2020 inseriu o § 9º no art. 56, a prever que a assembleia deverá ser encerrada no prazo de até 90 dias, contado da data de sua instalação. Desprovido da compreensão das causas da demora do procedimento, entendeu o legislador reformista que delimitar um prazo para encerrar os trabalhos evitaria a demora das incontáveis suspensões de assembleia. Porém, mesmo ao reformista ficou evidente que se estaria forçando a colocação em votação de um plano em torno do qual não se formaram coalizões majoritárias capazes de aprová-lo e, por consequência, a deliberação forçada resultaria na rejeição do plano. Ao invés de adotar normas de superação de impasses que promovessem a formação de consensos, o legislador preferiu perpetuar os impasses ampliando o procedimento, mediante a previsão de que após a rejeição do plano os credores poderiam apresentar em 30 dias plano alternativo, na forma do § 4º e ss. do art. 56.

Mais uma vez trocou seis por meia dúzia, pois a deficiente disciplina legislativa do plano de credores abre as portas para a perpetuação de impasses que causam a demora do procedimento recuperacional. Bem concretamente, o argumento que sustento é: a velocidade do procedimento recuperacional não decorre da previsão legal de prazos rígidos, mas de normas que estruturam a negociação de modo a superar impasses e promover o consentimento majoritário. Por não compreender como devem ser normas que estruturam a negociação, o legislador reformista investiu na fixação de prazos e previu normas que desestruturam a negociação.

Para demonstrar o argumento, basta analisar-se o inciso III do § 6º do art. 56 da LRF, que versa sobre o chamado plano alternativo de credores. O plano alternativo não é um plano alternativo, mas planos alternativos, uma vez que pode ser apresentado por credores que detenham mais de 25% dos créditos totais sujeitos à recuperação judicial (conforme a alínea 'a' do inc. III do § 6º) ou mais de 35% dos créditos dos credores presentes à assembleia-geral (conforme a alínea 'b' do inc. III do § 6º). Durante a tramitação da reforma, mais de uma vez chamei a atenção para o fato de que esta previsão legal é a crônica de um impasse anunciado. Afinal, com uma simplíssima operação aritimética, qualquer um pode constatar que estas normas abrem as portas para a apresentação de até 6 planos de recuperação concorrentes (4 planos de 4 grupos de credores, cada qual com mais de 25% dos créditos totais, e 2 planos de 2 grupos de credores com mais de 35% dos créditos presentes à assembleia). Os quóruns de maioria simples não funcionam neste contexto, pois cada um desses grupos de credores haverá de propor um plano que atenda os seus interesses e não dos interesses dos demais credores que não integram o grupo. Logo, é razoável supor que cada grupo de credores haverá de preferir o seu próprio plano. Havendo mais de um plano de credores a concorrer, a LRF não estabelece qual haverá de ser o escolhido. E cada grupo de credores buscará vetar os planos formulados por outros grupos de credores. Pronto: está formado o impasse que haverá de perpetuar o desfecho da recuperação judicial, enquanto o bloco de gelo derrete. É exatamente o mesmo impasse que impossibilitava a formação de consenso em coalização majoritária antes da reforma; que apenas foi repaginado para impossibilitar a formação de consenso em torno de qual será o plano dos credores. Este mesmo raciocínio pode ser descrito e demonstrado com diversa terminologia proveniente de ferramentas analíticas da análise econômica do direito, da teoria dos jogos e da ciência política, algumas das quais demonstram matematicamente o problema.

Vejam que o problema da atual disciplina do plano de credores é uma manifestação específica do problema geral das situações concursais. Em situações de crise, cada credor e acionista tende a agir individualmente, puxando a brasa para o seu assado. A crise gera um problema de ação coletiva marcado pela não-cooperação entre cada um dos credores e acionistas. É o cada um por si impulsionado pelo ditado "farinha pouca, meu pirão primeiro!". A primeira fase da solução para o problema geral é fazer com que esta coletividade de interesses dispersos atue como uma única entidade, dotada de um único interesse. Para tanto, é necessário que a lei estabeleça mecanismos capazes de agregar estes interesses; por isso, eu os chamo de mecanismos de agregação. Forçam-se os credores dispersos a agir como uma coletividade e impõem-se a eles uma forma de governança para a formação da vontade majoritária dessa coletividade.

A atual disciplina do plano de credores não agrega os interesses dos credores; pelo contrário, cria as condições para a desagregação desses interesses em até 6 grupos distintos e concorrentes, e não estabelece a governança política para a formação da vontade da coletividade de credores. A solução para o problema, portanto, é simples: basta reformar a LRF para estabelecer que os credores poderão propor um plano de credores, que eles haverão de desenhar por deliberações em vontade majoritária manifestada em um quórum de maioria absoluta (metade mais um dos credores presentes à assembleia que rejeitar o plano) ou manifestada por outro mecanismo de agregação de interesses pouquíssimo utilizado na recuperação: o comitê de credores. Este é o mecanismo de coordenação de credores que permite superar impasses mediante a coordenação de credores na etapa de negociação que antecede a deliberação sobre o plano. No entanto, não é utilizado na prática recuperacional e o legislador reformador não lhe dispensou nenhuma atenção. Tivesse dispensado, poderíamos ter viabilizado a utilização de um dos dois mecanismos de agregação de interesses mais relevantes na recuperação judicial (vide a experiência comparada do direito norte-americano).

Neste ano, empresas brasileiras terão que reestruturar algo entre R$ 260 e R$ 700 bilhões de dívidas (aqui) e pode-se esperar um substancial aumento de pedidos de recuperação judicial. Somente em fevereiro passado, o número de pedidos quase dobrou em relação ao ano passado (aqui). Com a atual disciplina legislativa, é fácil projetar o grande número de impasses e demoras nas recuperações judiciais. Estamos diante de outra clara crônica de impasses anunciados. Se não for aperfeiçoada a legislação recuperacional, os impasses se multiplicarão, os processos de recuperação se perpetuarão enquanto os blocos de gelo derretem. O bom de crônicas anunciadas é que podemos agir para evitar o indesejado desfecho. Com a palavra, o Ministério da Fazenda e o poder Legislativo.

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