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O princípio da fixação do crédito trabalhista cedido na recuperação judicial e na falência

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado consultor e parecerista.
Referência para citação: CAVALLI, Cássio. O princípio da fixação do crédito trabalhista cedido na recuperação judicial e na falência. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 7, p. 1-5, mar./2023. Disponível no www.agendarecuperacional.com.br  e no Linkedin. Acesso em:

Após publicar na Agenda Recuperacional da semana passada o artigo A reclassificação do crédito trabalhista cedido e a formação de mercado secundário ativo de negociação de créditos trabalhistas na Lei 11.101/2005, recebi de diversos colegas que atuam com recuperação judicial mensagens contendo as seguintes indagações: quais as normas que disciplinam o exercício de voto pelo cessionário que adquire diversos créditos trabalhistas em uma recuperação judicial? E, em caso de falência, o limite de 150 salários-mínimos para pagamento na classe de credores trabalhistas incide sobre o valor total dos créditos detidos pelo cessionário ou sobre o valor de cada um dos créditos cedidos? As duas questões são relevantíssimas e devem ser adequadamente respondidas.

Conforme registrei no artigo sobre a reclassificação do crédito trabalhista cedido, enquanto integrante do Grupo de Trabalho encarregado de elaborar a primeira minuta de anteprojeto de reforma da LRF, eu propus a adoção do § 5º do art. 83 da LRF em substituição ao § 4º do mesmo dispositivo para viabilizar a formação de um mercado secundário de créditos trabalhistas, com o propósito de melhor atender os interesses de cada um dos credores trabalhistas e para dotar o processo recuperacional de mais um mecanismo de agregação de créditos, capaz de aumentar a eficiência da decisão de alocação dos ativos do devedor, em benefício também dos credores trabalhistas e dos demais stakeholders interessados na alocação eficiente dos ativos da empresa devedora.

Conforme demonstrei, a revogada norma do § 4º do art. 83 da LRF levava a injustiças, pois a reclassificação do crédito trabalhista cedido levava (i) à diluição dos créditos quirografários,  cujo dividendo era reduzido pelo ingresso do crédito trabalhista cedido, (ii) à diminuição do valor presente a ser pago ao cedente do crédito trabalhista pelos potenciais cessionários, uma vez que o cedente alienaria o seu direito de receber na classe trabalhista, mas o cessionário adquiria um direito rebaixado e diluído de receber na classe quirografária, e a perda de valor suportada pelo cedente e pelo cessionário do crédito trabalhista correspondia (iii) à injusta apropriação do valor pelos demais credores trabalhistas que permaneciam na classe trabalhista com um dividendo aumentado.

Ou seja, normas de reclassificação do crédito cedido (inclusive o trabalhista) conduzem a graves injustiças. Mais do que isso, em razão de a reclassificação causar perdas ao cedente e ao cessionário do crédito trabalhista, não chegava a se formar um mercado secundário ativo de negociação de créditos trabalhistas e os credores trabalhistas não possuíam uma saída rápida para a situação de insolvência, ainda que preferissem e necessitassem se desfazer imediatamente do crédito para obter recursos para fazer frente às suas necessidades.

A ausência de um mercado secundário ativo de negociação de créditos (inclusive trabalhistas) também levava a ineficiências no processo recuperacional. Muitas vezes, as diferentes necessidades sentidas por cada um dos integrantes da classe dos créditos trabalhistas (o raciocínio também se aplica a outras classes) leva a dificuldades de tomada de decisão pela classe. Por exemplo, a maioria dos credores trabalhistas pode necessitar de recursos imediatos para fazer frente às suas despesas alimentares e, com isso, pode preferir soluções que se aproximem da liquidação da empresa, ainda que isso afete empresas viáveis e, inclusive, a manutenção de postos de empregos. Neste sentido, diz-se que a solução preferida pela coletividade foi ineficiente, pois diminui o valor de alocação dos ativos do devedor em detrimento à recuperação de créditos pelos credores, inclusive trabalhistas; e, também, dificulta a alocação produtiva dos ativos, com prejuízos aos interesses de empregados e fornecedores que dependem da manutenção da (alocação produtiva dos bens da) empresa.

Com efeito, a revogação da norma de reclassificação dos créditos cedidos e a sua substituição por uma norma de manutenção da classificação do crédito teve por objetivo evitar as consequências injustas e ineficientes que a reclassificação causava, por meio de normas voltadas a incentivar a formação de um mercado secundário de créditos na recuperação judicial e na falência. Vale dizer, o § 5º do art. 83 da LRF é enunciado que também possui carga normativa principiológica, pois atribui valor normativo à finalidade de incentivar a formação de um mercado secundário de créditos na recuperação judicial e na falência. Esta finalidade normativa coaduna-se com as finalidades normativas dos princípios da preservação da empresa e da alocação eficiente dos bens do devedor (encontrados nos arts. 47 e 75 da LRF), além de aumentar o rol de mecanismos orientados à satisfação efetiva do crédito trabalhista na recuperação e na falência.

Para promover estas finalidades, a LRF adotou o princípio da fixação, de acordo com o qual as situações jurídicas dos credores tornam-se fixas com a abertura da recuperação ou da falência, isto é, os créditos conservam suas condições e preferências de pagamento com a abertura do concurso. Este princípio encontra paralelo no fixation principle do direito holandês (ver DECLERCQ, Peter J.M. Netherlands insolvency law. The Hague: T.M.C. Asser Press, 2002, p. 4 e ss.). Assim, após a abertura do processo concursal, as posições de cada um dos interessados são fixadas e mantidas nas suas posições relativas. É esta fixação das posições com a abertura da falência e da recuperação que fornece os parâmetros a partir dos quais se desenvolverá a negociação na recuperação e na falência. Isto é, as posições mantêm-se fixas salvo se as partes do concurso negociarem e aceitarem alterar estas posições, de acordo com os procedimentos e quóruns legalmente estabelecidos. A cessão de crédito fixado não lhe altera a preferência, o valor e a natureza. A norma não constitui uma novidade no ordenamento jurídico brasileiro, conforme pode ver-se no entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da conservação da natureza alimentar de crédito inscrito em precatório que seja cedido. Conforme a tese fixada no Tema 361, com Repercussão Geral (julgada no RE 631.537): “A cessão de crédito alimentício não implica a alteração da natureza.” Ou seja, na ordem de preferência de pagamento de precatórios, a cessão do crédito não lhe subtrai a natureza alimentar e, portanto, o crédito conserva sua preferência na ordem de pagamento. O fundamento do decisum radicou-se no art. 100 da Constituição e, também, no inciso XXII do art. 5º da Constituição, que cuida do direito fundamental de propriedade. Com efeito, o direito constitucional adota o princípio da fixação do crédito alimentício inscrito em precatório, para tutelar o direito de propriedade. Desrespeitar a prioridade do crédito alimentar que fosse cedido equivaleria a violar o direito constitucional de propriedade.  

A cessão de créditos trabalhistas não altera a posição creditícia fixada no início do procedimento; apenas altera quem é o titular da posição. Com efeito, o cessionário de dois créditos trabalhistas adquire duas posições creditícias fixas e se legitima a exercer os direitos políticos decorrentes de cada uma das posições creditícias adquiridas. A manutenção da independência dessas posições jurídicas encontra explicação nos mesmíssimos fundamentos de justiça e eficiência almejados pela norma de não reclassificação do crédito trabalhista cedido. Vejamos: se em uma recuperação judicial há dez credores trabalhistas, de acordo com o quórum ordinário de deliberação sobre o plano, cada credor trabalhista terá um voto na assembleia geral de credores. Seis credores trabalhistas terão o poder de formar a vontade majoritária na classe. Se um fundo de investimento, interessado em adquirir as posições de credores trabalhistas para poder tomar a decisão de alocação eficiente dos ativos do devedor, adquire, por cessão, os créditos de seis credores, este cessionário terá o direito de proferir  seis votos, isto é, um voto para cada crédito trabalhista cedido. Caso este cessionário, após fazer o esforço econômico para adquirir seis créditos, passasse a contar com apenas um único voto, os restantes quatro credores trabalhistas na classe, antes minoritários, passariam a ter o poder de controlar a deliberação. Isto é, se apropriariam do direito político antes pertencentes aos outros seis credores trabalhistas que cederam seus créditos. Esta migração de direitos políticos refletiria na precificação dos créditos trabalhistas antes da cessão, o que levaria a uma substancial redução do preço pelo qual cessionários se disporiam a pagar pelo crédito. Ou seja, uma violação do princípio da fixação afetaria frontalmente os propósitos almejados pela inserção do § 5º no art. 83 da LRF. Do ponto de vista constitucional,  a violação do princípio da fixação representaria uma desapropriação de um direito de propriedade em sentido amplíssimo sem o devido processo legal. O direito de controlar tomadas de decisões assembleares, assim como ocorre no direito societário, é dotado de valor econômico e, por isso, é tutelado por normas constitucionais relativas a direitos de propriedade em sentido amplíssimo. Por isso, não poderia o intérprete, em violação à norma constitucional e ao princípio da fixação, sustentar que o cessionário de créditos trabalhistas (assim como de créditos de outras classes) passaria a deter apenas um crédito para fins de exercício de direitos políticos de voto em deliberação acerca do plano de recuperação judicial.

Em razão do mesmo princípio da fixação é que o crédito trabalhista cedido parcialmente após a abertura do concurso conservará apenas um voto, cabendo ao cedente e cessionário regularem internamente a governança da co-titularidade do crédito para fins de decisão da orientação e exercício de voto.

O princípio da fixação também determina que o cessionário de créditos trabalhistas exercerá as posições de cada um dos cedentes dos créditos trabalhistas para fins de aplicação do limite de 150 salários-mínimos para pagamento, conforme previsto no art. 83, I, da LRF. Do contrário, o cedente trabalhista e o cessionário seriam desapropriados e o valor seria apropriado pelos demais credores trabalhistas, sem que houvesse fundamento algum para tanto. Vejamos um exemplo: se na classe trabalhista há dez credores trabalhistas, cada qual com créditos de 150 salários-mínimos, e massa falida só possui ativos suficientes para pagar 100 salários-mínimos a cada credor trabalhista. Se um mesmo cessionário adquirir quatro créditos trabalhistas e se entender que o cessionário deve ser tratado como um só credor sujeito ao limite de 150 salários-mínimos, cada um dos seis remanescentes credores trabalhistas se beneficiará de um substancial aumento no seu dividendo dos iniciais 100 para quase 142 salários-mínimos, apenas porque o cessionário adquiriu quatro créditos. Neste caso, o ganho dos demais credores trabalhistas corresponderá a uma diminuição do valor a ser pago pelo cessionário aos cedentes. Isto é, a lei estará a tirar daqueles que mais necessitam de liquidez para fins alimentares para dar aos credores trabalhistas que menos necessitam, sem que haja justificativa alguma para tanto. O princípio da fixação atua nesta situação para impedir esta injusta redistribuição do dividendo.  

Foi com base no princípio da fixação, que evita injustiças e ineficiências e promove justiça e eficiência, que eu sugeri a inclusão da norma agora positivada no § 5º do art. 83 da LRF, que expressamente impede a reclassificação de créditos trabalhistas cedidos na falência e na recuperação. É este princípio que rege o tratamento que haverá de ser dado ao cessionário quanto ao exercício dos direitos políticos na recuperação e na falência e quanto aos direitos patrimoniais na recuperação e na falência.

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