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O financiamento da empresa em recuperação na reforma da LRF

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP, advogado e parecerista.
Referência ABNT para citação: CAVALLI, Cássio. O financiamento da empresa em recuperação na reforma da LRF. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 11, p. 1-4, mar./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em:

Em matéria de financiamento da empresa em crise, a palavra-chave é uma só: prioridade. Afinal, o que afasta potenciais financiadores de empresas em crise é a situação de sobre-endividamento, também chamada de debt-overhang pela ciência das finanças. A razão para tanto é simples: ao avaliar a possibilidade de financiar empresa sobre-endividada, o financiador nutre o fundado receio de que, tão logo conclua o empréstimo, os demais credores corram na frente para se servir dos novos recursos aportados. Por conseguinte, a empresa em crise não conseguirá financiar seus ativos, mesmo que devam ser financiados por terem valor presente positivo, isto é, são investimentos capazes de beneficiar tanto o financiador quanto os demais credores da empresa. Logo, na terminologia anglicizada das finanças, situações de debt-overhang conduzem a situações de underinvestment.

O fato de haver terminologia técnica para diagnosticar e resolver o problema indica tratar-se de um problema com solução conhecida. E a solução é uma só: prioridade, prioridade, prioridade. Na terminologia das finanças, diz-se senioridade. É sênior o credor que recebe antes de credores júniores. Assim, para viabilizar financiamentos de empresa sobre-endividadas, basta assegurar-se ao financiador que tenha prioridade de recebimento de seu crédito antes dos demais credores da empresa. Com isso, evita-se que os novos recursos evaporem, tal qual água em chapa quente, antes de irrigarem os projetos de VPL positivo.

É com base nesta teoria das finanças que profissionais de finanças que trabalham em instituições financeiras, fundos de investimento, financiadores institucionais e quaisquer outros investidores avaliarão oportunidades de financiamentos a empresas em crise. A decisão de financiar dependerá da constatação de que a empresa possui projetos com VPL positivo e que o financiador terá senioridade em relação aos demais credores. Por isso, as instituições jurídicas devem estar atentas aos critérios de avaliação empregados por estes investidores. Em síntese, sem senioridade, sem financiamento. Logo, para financiar empresas economicamente viáveis, que são as que possuem VPL positivo, as normas da LRF devem assegurar ao financiador uma posição de prioridade no recebimento de seu crédito.

Entretanto, apesar da simplicidade da teoria das finanças e das possíveis soluções jurídicas para o problema, parece que o legislador original e reformista da LRF não compreendeu esta lição.

Antes da reforma, quem emprestasse dinheiro para a empresa em recuperação seria pago como credor extraconcursal, na classificação a que alude o inciso V do art. 84 c/c art. 67 da LRF. Caso o financiador desejasse ter uma maior senioridade, não adiantaria obter uma garantia real, uma vez que, no direito brasileiro desde 2005, os créditos garantidos por garantia real são tratados como verdadeiros privilégios gerais e situam o credor garantido (art. 83, II, da LRF) abaixo de outros privilégios gerais, como o trabalhista (art. 83, I, da LRF), e os créditos extraconcursais (que são verdadeiros super-privilégios gerais). Assim, para obter uma maior senioridade, o financiador teria que obter em garantia a alienação fiduciária de bens, de modo a figurar como titular de direito de restituição, acima dos credores extraconcursais e concursais (art. 149 da LRF). Ainda antes da reforma da LRF, dizia-se que o nível de senioridade assegurado ao financiador sem a garantia de alienação fiduciária não seria suficiente para incentivar novos financiamentos. Assim, inseriu-se na LRF o procedimento da Seção IV-A (arts. 69-A a 69-F) para que o devedor obtivesse autorização judicial para constituir garantias reais (tanto direitos reais de garantia quanto alienação fiduciária) em benefício do financiador. Imaginava-se que, com as garantias reais, estaria assegurada a prioridade do financiador.

Já a posição do financiador da empresa em recuperação sem autorização judicial a que se refere o art. 67 da LRF recebeu tímida promoção pela reforma e passou à frente dos financiamentos feitos à massa falida (art. 84, II), das despesas com arrecadação, administração, realização do ativo na falência (art. 84, III) e das custas judiciais a massa falida tenha sido condenada (art. 84, IV). Por outro lado, o financiador que obtiver autorização judicial para constituir garantias reais figurará supostamente três casas acima, no nível do inciso I-B do art. 84 da LRF. Digo supostamente pois, ao constituir direito real de garantia, o financiador terá um crédito com garantia real, os quais situam-se em hierarquia bem inferior, no patamar do art. 83, II, da LRF. Já aqui, deixou o legislador um paradoxo. Ao autorizar a constituição de direito real de garantia para o crédito do financiador da empresa em crise, este crédito será, ao mesmo tempo, um crédito com privilégio geral (que a LRF apenas denomina de crédito com garantia real), e um crédito extraconcursal a que alude o art. 84, I-B, da LRF. Vejamos qual haverá de ser a prioridade que a jurisprudência reconhecerá ao financiador nos casos práticos em que a recuperação for convolada em falência. Até lá, há sério risco de financiadores se absterem de financiar, sob o argumento correto de que há insegurança jurídica. Para evitar a insegurança, a reforma deveria ter restaurado a prioridade absoluta do crédito com garantia real, nos termos do que previa o art. 125 do Decreto-lei 7.661/1945. Perdeu a oportunidade de fazê-lo e, assim, de restaurar a dignidade das garantias reais no direito brasileiro e, de quebra, assegurar prioridade de financiadores para fomentar empréstimos a empresas viáveis em recuperação judicial.

O paradoxo não para aí. Há outro, embora de cabeça para baixo. Se houver autorização para constituição de alienação fiduciária em garantia, o crédito figurará no nível extraconcursal, conforme o art. 84, I-B, da LRF. Com isso, corre-se o risco de se interpretar, equivocadamente a meu ver, que o crédito do financiador garantido por alienação fiduciária em garantia é crédito extraconcursal (art. 84, I-B) e não pretensão restitutória (art. 85 c/c art. 149 da LRF). A interpretação deve ser pela senioridade, em razão do princípio da preservação da empresa.

Já aí bem se vê que ordens de prioridade não foram o forte da reforma da LRF. Estas ordens são também relevantes antes mesmo da insolvência, pois são levadas em consideração quando da originação de operações, que projetam a hierarquia do crédito no pior cenário possível, que é o da falência. Nesse caso, assegurar-se, na falência, prioridade de crédito conforme contratado assegura ex ante financiamentos eficientes. Por isso, no texto da reforma, incluiu-se o art. 69-C da LRF, que diz que o juiz não poderá autorizar a constituição de garantia real sobre bens que já estejam onerados em garantia. Esta disposição foi incluída para deixar claro que credores com garantia real não seriam rebaixados por imposição judicial. Com isso, pretendeu-se dizer que, no sistema brasileiro, diferentemente do que ocorre no sistema norte-americano, não há a possibilidade de criação de um priming lien, isto é, a imposição judicial de uma nova garantia real sênior em relação às garantias reais já constituídas sobre os mesmos bens. No entanto, como o legislador reformista manteve inalterado o tratamento do crédito com garantia real como um verdadeiro privilégio geral, chegou-se a uma inusitada situação. Se o financiador obtiver autorização para constituir garantia real (art. 69-C), os bens onerados deverão estar livres, pois não haverá priming por imposição judicial. Porém, se o financiador apenas emprestar o dinheiro na recuperação judicial, sem autorização judicial para constituir garantia, o crédito do financiamento figurará como extraconcursal (art. 84, I-E), acima, portanto, de todos os créditos com garantia real. Desse modo, o legislador reformista manteve uma inusitado norma de priming geral sem autorização judicial que não encontra paralelo em lugar algum do mundo.

Por essas e por outras, comparei os sistemas de prioridades na LRF, antes e após a reforma, aos vertiginosos desenhos de M.C. Escher, nos quais não se sabe o que está acima e o que está embaixo. Seria desejável que nas próximas reformas da LRF o legislador buscasse compreender o problema de finanças e a solução jurídica para o financiamento de empresas sobre-endividadas, e que consiga listar ordens de preferência em normas simples e lineares, e não nas caleidoscópicas normas de prioridade que a LRF instituiu em 2005 e que a reforma de 2020 perpetuou.

Há inúmeros outros problemas relevantes acerca do financiamento da empresa em recuperação judicial que merecem uma análise detida, mormente ante as disposições que foram inseridas, ou que deixaram de sê-lo, na reforma da LRF. Alguns, inclusive, relacionam-se a prioridades. Porém, deixarei para explorá-los noutra oportunidade. Por hoje, basta a conclusão de que, enquanto não se aperfeiçoam as prioridade na LRF, perderão as empresas em crise, que não conseguirão se financiar, e seus credores, empregados e demais interessados. Ordem de prioridades é coisa séria e a incapacidade de elaborá-las coerentemente impõe severos custos à sociedade brasileira.

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