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O fim da recuperação extrajudicial, vida longa à recuperação extrajudicial

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP, advogado e parecerista.
Referência ABNT para citação: CAVALLI, Cássio. O fim da recuperação extrajudicial, vida longa à recuperação extrajudicial. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 17, p. 1-4, mai./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em:

A recuperação extrajudicial é uma invenção do legislador brasileiro que promulgou a Lei 11.101/2005. Foi resultado da antropofagia legislativa na importação do modelo norte-americano de recuperação de empresas. Como se sabe, o Bankruptcy Code de 1978 disciplina nos seus capítulos os diferentes procedimentos concursais, e os capítulos são utilizados para denominar os procedimentos que disciplinam. Assim, há o Chapter 7, que disciplina a falência, o Chapter 9, que disciplina a reorganização de municípios, e o Chapter 11, que disciplina a recuperação judicial de empresas e de quaisquer devedores, o Chapter 12, que disciplina a recuperação de pequenos produtores rurais e pescadores, e o Chapter 13, que disciplina a reorganização de devedores com renda. Já os Chapters 1, 3 e 5 contêm disposições gerais aplicáveis aos procedimentos e o Chapter 15 disciplina procedimentos transfronteiriços. Estes capítulos constituem a totalidade do Bankruptcy Code, o qual só utiliza capítulos ímpares, com exceção do Chapter 12, que foi inserido posteriormente. Observe o leitor que, nesta ordenação, não há nenhum capítulo dedicado à recuperação extrajudicial. E isto porque a recuperação extrajudicial não é um procedimento recuperatório no direito norte-americano. O que há, na prática do direito norte-americano, é uma estratégia de utilização do Chapter 11, isto é, da recuperação judicial, de acordo com a qual a empresa devedora negocia previamente um plano com seus credores e ajuíza o pedido de Chapter 11 instruído com o plano e com os termos de adesão necessários à aprovação. Isto é, o plano e as adesões de Chapter 11 são pré-embalados. Daí o apelido prepackaged bankruptcy.

O legislador brasileiro de 2005 não compreendeu a prática e, para incorporá-la na Lei 11.101/2005, inventou o procedimento de recuperação extrajudicial (Capítulo VI, arts. 161-167), distinto do procedimento de recuperação judicial (Capítulo III, arts. 47-72). Como resultado, a Lei 11.101/2005 disciplinava em duplicado os mesmos assuntos, com normas substancialmente iguais com ligeiras diferenças para cada um dos procedimentos. Assim, por exemplo, aplicava-se a mesma norma de legitimação para figurar como devedor na recuperação judicial e na extrajudicial (art. 1º), os mesmos requisitos para postulação do art. 48 (art. 161); e a mesma norma sobre a previsão de alienação de ativos no plano (art. 60 e art. 166), que remetem à disciplina de alienação de ativos na falência (art. 142). A duplicação ou multiplicação de dispositivos que enunciam de modo igual uma mesma norma não é técnica legislativa recomendável. Por tratarem da mesmíssima forma de um mesmíssimo tema, estes dispositivos evidentemente constituem disposições comuns à recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e à falência. Melhor teria sido concentrá-los em um único dispositivo, pois assegura-se maior uniformidade de interpretação e, portanto, promove segurança e previsibilidade.

O prejuízo à uniformidade normativa é perceptível nos dispositivos que tratam de um mesmo tema, mas de forma ligeiramente distinta. Assim, por exemplo, em um erro de importação de modelo de proporções monumentais, o art. 41 da LRF dispôs sobre quatro classes rígidas de credores admitidas a votar na recuperação judicial, ao passo que, na recuperação extrajudicial, o art. 163, § 1º, da LRF, corretamente atribuiu ao plano de recuperação a tarefa de criar classes de credores. De igual modo, o mesmo assunto do quórum recebeu diverso tratamento. Assim, o art. 45 da LRF prevê quóruns de maioria simples de votos válidos presentes à assembleia para a aprovação do plano de recuperação judicial, enquanto o art. 163, caput, prevê quóruns de maioria absoluta de votos dos credores de cada classe (antes da reforma, o quórum era de maioria qualificada).

Sobre outros temas de grande relevância, a LRF positivou normas para a recuperação judicial e silenciou quanto à recuperação extrajudicial. Um bom exemplo é a nomeação de administrador judicial, expressamente prevista na recuperação judicial (art. 52, I), e não mencionada no capítulo da recuperação extrajudicial.

As deficiências da disciplina legislada, no entanto, não tardaram a ser percebidas na prática forense envolvendo casos de recuperação extrajudicial. Assim, para aferir o atingimento de quórum de aprovação de plano de recuperação extrajudicial, passou-se a nomear administrador judicial para elaborar a lista de credores e contar os votos proferidos. Com isso, delongou-se o tempo de duração do procedimento, e a prática forense teve que aclarar que, apesar da ausência de disposição expressa, também são suspensas as execuções contra a empresa em recuperação extrajudicial. Desse modo, mesmo antes da reforma de 2020, a prática forense foi polindo a disciplina do procedimento de recuperação extrajudicial de modo a aproximá-lo da recuperação judicial.

A reforma de 2020 cristalizou muitas dessas construções jurisprudenciais e avançou outras tantas. O resultado é que a recuperação extrajudicial se aproximou tanto da recuperação judicial que, atualmente, ambas parecem constituir um mesmo procedimento.

Das alterações legislativas, duas se sobressaem.

A primeira, ocorrida no procedimento de recuperação judicial, foi a inclusão do art. 56-A, do art. 45-A e do § 4º, I, no art. 39, por iniciativa, se não me falha a memória, do prof. Francisco Satiro e com a aprovação unânime dos membros do GTzinho, a admitir que a deliberação sobre o plano de recuperação judicial seja feita não apenas por votação colhida em assembleia geral de credores, mas também por "termo de adesão firmado por tantos credores quantos satisfaçam o quórum de aprovação específico". Com isso, o plano de recuperação judicial também passou a poder ser pré-embalado, o que antes era a característica principal e exclusiva da recuperação extrajudicial.

A segunda alteração fez-se pela inclusão do § 7º no art. 163, por ideia do advogado Eduardo Guimarães Wanderley que eu levei até a minuta do GTzinho, de admitir-se o início da recuperação extrajudicial, com suspensão das execuções, para buscar-se as adesões faltantes à homologação. Com isso, a recuperação extrajudicial se aproximou do procedimento de recuperação judicial.

A síntese desse movimento de unificação da recuperação judicial com a recuperação extrajudicial é encontrada na parte final do § 7º no art. 163, que prevê a possibilidade de conversão da recuperação extrajudicial em recuperação judicial a pedido do devedor. Ou seja, caso não se atinja o quórum de aprovação, o devedor pode requerer a conversão do procedimento em recuperação judicial. Com isso, de certo modo a recuperação extrajudicial torna-se uma etapa do procedimento de recuperação judicial.

A assimilação da recuperação extrajudicial pela recuperação judicial pode se ver em inúmeras disposições que regem da mesma forma a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial. Assim, o juízo competente é o mesmo (art. 3º da LRF); a prevenção também (art. 6º, § 8º), inclusive para processo estrangeiro (art. 167-D, § 1º). Pode haver mediações antecedentes à recuperação judicial e à recuperação extrajudicial (art. 20-B, § 3º), e o ajuizamento da recuperação extrajudicial reconstitui os direitos e garantias anteriores à mediação (art. 20-C, parágrafo único). E a abrangência de créditos é a mesma (art. 161, § 1º, c/c art. 163, § 1º), assim como a norma de suspensão de ações e execuções é a mesma (art. 163, § 3º). A disciplina sobre a alienação de bens prevista no plano é, em ambos os procedimentos, alienação judicial e regida pelas mesmas disposições legais (art. 166), bem como a eficácia da alienação de bens feita na forma do plano de recuperação extrajudicial é protegida da mesma forma que na recuperação judicial (art. 66-A), e como os demais atos praticados na forma prevista em plano de recuperação extrajudicial não serão ineficazes em caso de falência (art. 131).

Há, no entanto, alguns dispositivos em que se faz referência apenas à recuperação judicial. Assim, por exemplo, o art. 50-A, que dispõe sobre a base de cálculo do PIS/Pasep e sobre a utilização de prejuízo fiscal acumulado e base de cálculo negativa do IR e CSLL, com relação ao impacto contábil decorrente do abatimento de dívidas. Idem com relação ao art. 6º-B, que versa sobre a não aplicação do limite de 30% do prejuízo fiscal acumulado e base de cálculo negativa para absorver ganho de capital decorrente da alienação de bens. Ambos os dispositivos, conquanto mencionem expressamente apenas a recuperação judicial, devem ser lidos como contendo referência à recuperação extrajudicial. Afinal cuidam do mesmo procedimento, embora com nuances diferentes. Tanto que, se se entender de modo diverso, o procedimento de recuperação extrajudicial poderá ser convertido em procedimento de recuperação judicial a pedido do devedor (art. 163, § 7º), para homologação do plano de recuperação com base no termo de adesões previamente colhidas.

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