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Metáforas da preservação da empresa

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP, advogado e parecerista.
Referência para citação: CAVALLI, Cássio. Metáforas da preservação da empresa. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 18, p. 1-4, jul./2023. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br e Linkedin

Um dos temas que mais desperta minha curiosidade é o das metáforas que podem ser utilizadas para explicar o conteúdo do princípio da preservação da empresa. O princípio da preservação da empresa constitui o alicerce fundamental sobre o qual assenta o edifício do direito recuperacional. Por isso, a inteira disciplina normativa do direito recuperacional pode ser construída coerentemente a partir do objetivo teleológico de preservar empresas. Enquanto norma imediatamente finalística, o princípio da preservação da empresa aponta para um estado de coisas desejável que as normas recuperacionais devem promover. Daí a importância em se detalhar normativamente esse estado de coisas almejado pelo princípio da preservação da empresa. Para a consecução da tarefa de descrever o conteúdo do princípio da preservação da empresa, pode-se recorrer ao emprego de metáforas, que transmitem as ideias jurídico-dogmáticas de modo simbólico e com cores e contornos mais expressivos. Com efeito, o que caracteriza a empresa, enquanto um estado de coisas juridicamente desejável, que o direito recuperacional almeja promover?

Antes de mais nada, empresas são empreendimentos cooperativos que contam com os aportes de muitos. Por isso, empresas podem ser descritas como conjuntos de aportes, nos quais cada aporte, individualmente considerado, constitui um determinado bem, que pode ser tanto um direito real quanto um direito pessoal de caráter obrigacional. Nesse sentido específico, empresas são conjuntos de direitos patrimoniais em sentido amplíssimo.[1]

Assim como a união faz a força, a reunião dos aportes individuais dos interessados na empresa é capaz de gerar um valor econômico maior do que o valor que se obteria pela soma dos valores de cada um dos bens individuais que compõem o conjunto. Nesse sentido, a empresa é um conjunto de bens dotado da característica matemática da superadição, que basicamente é a característica de certos bens que, reunidos em conjunto, possuem um valor superior ao valor que se obteria pelo somatório dos valores individuais de cada um dos bens. Isto é, em se tratando de bens reunidos em conjuntos denominados empresas, muitas vezes, dois mais dois não é igual a quatro, mas a cinco, seis ou até mais. A fórmula matemática que descreve a propriedade da superadição é:

f(x+y) ≥ f(x) + f(y)

Isto é, há uma função que faz com que o conjunto possua maior valor do que a soma de suas partes. Com efeito, a empresa enquanto conjunto de bens é dotada de um sobrevalor (surplus value), que justifica a manutenção dos bens reunidos em conjunto, ao invés de separados uns dos outros.

A propriedade da superadição é também descrita pela expressão sinônima sinergia, em virtude da qual certos bens reunidos geram um maior valor do que a soma das partes. Neste sentido, preservar empresas significa preservar conjuntos de bens dotados de sinergia.

A propriedade da superadição é verificada em inúmeras situações da vida. Assim, no clássico Cosmos, o astrônomo Carl Sagan demonstra a diferença entre o preço de aquisição dos elementos químicos que compõem o corpo humano e o preço para a reunir-se estes elementos de modo a formar um conjunto dotado de vida. O autor estimou na década de 1980 que as moléculas químicas que compõem o corpo humano poderiam ser adquiridas por valor inferior a dez dólares, pois nós “[s]omos feito sobretudo de água, que não custa quase nada; o carbono é cotado na forma de carvão; o cálcio de nossos ossos, como giz; o nitrogênio em nossas proteínas, como ar (também é barato); o ferro em nosso sangue, como pregos enferrujados.”[2] E também estimou o “quanto custaria juntar todos os componentes moleculares corretos que constituem o corpo humano comprando as moléculas nos fornecedores de substâncias químicas. A resposta é cerca de 10 milhões de dólares”.[3] E a vida resultante da combinação desses ingredientes é infinitamente mais valiosa. É nesse sentido que frequentemente a doutrina se refere à empresa viável enquanto um organismo vivo[4], cujo valor deve ser preservado.

Na empresa, a reunião dos bens em um conjunto adequadamente organizado, tanto em integração horizontal (na qual há redução de custos de produção em razão dos ganhos de escala ou de escopo), quanto em integração vertical (na qual há redução de custos de transação), resulta em um conjunto cujo valor excede ao valor da soma dos bens individualmente considerados.

Outra magnífica metáfora da preservação da empresa encontra-se na peça O mercador de Veneza, de William Shakespeare, na qual o credor Shylock cobra uma dívida do mercador Antônio fazendo a execução recair sobre uma libra de carne do corpo do devedor. Se retirada a libra de carne do corpo de Antônio, Shylock terá satisfeito sua pretensão. Porém, a retirada de uma libra de carne do corpo do devedor muito provavelmente levará à morte de Antônio. Esta metáfora demonstra que a retirada de um dos elementos do conjunto pode subtrair um valor superior ao do bem retirado. Afinal, conforme a noção de superadição, se dois mais dois resultam em um conjunto que vale seis, a subtração de dois retira do conjunto um total de quatro e deixa um valor remanescente de apenas dois.

Conforme a parábola d’O Mercador de Veneza, a retirada de apenas uma libra de carne do corpo do devedor resultaria em uma subtração de valor muitíssimo maior, já que Antônio perderia a vida. Com isso, seriam prejudicadas todas as demais pessoas que se relacionavam com Antônio. Com essa metáfora, vê-se o caráter coletivista da preservação da empresa, que busca preservar o valor do conjunto de bens em benefício da coletividade de interessados (credores, fornecedores e acionistas) que se relacionam com a empresa.

Nesse sentido, vê-se que certos bens são essenciais para a empresa, ou, conforme a metáfora, certos bens são essenciais para a sobrevivência do valioso conjunto. O reconhecimento da essencialidade dos bens para a preservação da empresa leva à proibição da retirada destes bens do conjunto empresarial. A categoria de bens essenciais para a preservação do conjunto empresarial, conquanto guarde íntima relação com o direito recuperacional, também se manifesta na disciplina do processo de execução, por meio do princípio da menor onerosidade da execução. Neste sentido, o princípio da preservação da empresa compartilha sua carga normativa com o princípio da menor onerosidade da execução. Muito antes da promulgação da Lei 11.101/2005 a jurisprudência já impedia a busca e apreensão que resultasse na retirada de bens essenciais à continuidade da empresa.[5] Nesse sentido, vê-se claramente que há uma tensão entre a tutela individual do crédito, por meio do processo de execução do crédito e de garantias que oneram partes da empresa, e o princípio da preservação da empresa, que almeja preservar o sobrevalor do conjunto empresarial em benefício de todos os demais credores e interessados na empresa. Esta tensão verifica-se em cheio na peça O Mercador de Veneza, conforme consignou Rudolf Jhering (A luta pelo direito, p. 54), pois não é o credor “quem reclama a sua libra de carne, é a própria lei de Veneza que bate à porta do tribunal, - porque o seu direito e o direito de Veneza são um só; no seu direito é o direito de Veneza que desmorona.” Ou seja, está em julgamento a credibilidade da lei que autoriza a execução de uma libra de carne, ante a tensão que se estabelece entre a tutela individual do crédito e a preservação da vida empresarial. Esta tensão é ineliminável nos casos de concurso recuperacional.

O conjunto de bens em sentido amplíssimo que gera a superadição, a sinergia ou o sobrevalor empresarial depende da continuação da operação da empresa. Por isso, bens essenciais à continuidade da empresa, assim como uma libra de carne para a continuidade da vida do Mercador de Veneza Antônio, não podem ser subtraídos do conjunto. Entretanto, como o que se quer preservar é a empresa, isto é, a vida, não são apenas bens tangíveis que não podem ser retirados: assim como n’O Mercador de Veneza, também não se pode tirar uma gota de sangue. A metáfora remete evidentemente ao papel que o crédito, isto é, os recebíveis que alimentam o caixa da empresa, desempenham para a manutenção da vida empresarial. Na doutrina, aliás, é frequente o emprego da metáfora da circulação sanguínea para explicar a importância econômica do crédito e de sua circulação para a organização empresarial.[6] Ou seja, conforme a expressão de Pontes de Miranda, o crédito e a sua circulação representam como que  “sangue para o organismo animal”,[7] de modo que, conforme anotou Giorgi, “así como el cuerpo se sostiene por la circulación y, cuando está interrumpida, languidece y se corrompe, del mismo modo, tampoco los comercios, si se elimina la circulación de los cambios, podrán florecer.”[8]

Preservar a empresa, portanto, é preservar o corpo enquanto conjunto de órgãos e a operação da empresa, enquanto atividade constituída por atos que resultam em posições creditícias.


[1] Nesse sentido, ver CAVALLI, Cássio. Empresa, direito e economia.  Rio de Janeiro: Forense, 2013.

[2] SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras. 2017, p. 177.

[3] SAGAN, Carl. Cosmos. São Paulo: Companhia das Letras. 2017, p. 178.

[4] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação de empresas e falências comentada. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2005, p. 43.

[5] RESTIFFE NETO, Paulo; RESTIFFE, Paulo Sérgio. Garantia fiduciária. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2000, p. 197 (referindo o AgInt 173.341-RS, de 26.08.1998, do Min. Eduardo Ribeiro, no qual “Acolheu-se, excepcionalmente, a suspensão provisória da efetivação da liminar concedida em ação de busca e apreensão de bem, para continuar o objeto fiduciado provisoriamente na posse da devedora, por indispensável à continuação das suas atividades, considerando-se a existência de discussão relevante de matéria de defesa em processo conexo ou paralelo e para que nas circunstâncias do caso concreto a medida não impedisse, na prática, o devedor de litigar, já que ficaria cerceada sua atividade.”).

[6] Assim, ver, por exemplo, COMPARATO, Fábio Konder e SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 129.

[7] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, v. 34, § 3.834, n. 2, p. 54.

[8] GIORGI, Giorgi, Teoria delle obligazioni, vol. VI, p. 246, Turín, 1927, apud Giuseppe Gualtieri e Ignacio Winizky, Titulos circulatorios, Buenos Aires: Victor P. de Zavalía, 1974, p. 16.

 

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