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A silenciosa revogação das debêntures com garantia flutuante e o Marco Legal das Garantias

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Advogado e parecerista. Professor da FGV Direito SP.
CAVALLI, Cássio. A silenciosa revogação das debêntures com garantia flutuante e o Marco Legal das Garantias. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 2, n. 39, p. 1-3, mar./2024. Disponível em www.agendarecuperacional.com.br

A recente promulgação da Lei 14.711/2023, exageradamente apelidada de Marco Legal das Garantias, alterou diversos dispositivos da Lei 6.404/1976 relativos às debêntures. Analisei essas novidades legislativas em comentários que teci aos arts. 52 a 74 da Lei 6.404/1976, recém publicados na obra Lei das Sociedades Anônimas Comentada, organizada por Alfredo de Assis Gonçalves Neto (São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 2024), disponível na Livraria da Revista dos Tribunais e na Amazon.

As alterações legislativas almejaram reduzir os custos da emissão de debêntures. Assim, por exemplo, foi alterado o § 1º do art. 59 da Lei 6.404/1976 para atribuir-se a competência para autorizar a companhia a emitir debêntures inclusive à diretoria. Por isso, a Lei 14.711/2023 teve que alterar os demais dispositivos da Lei 6.404/1976 que faziam referência à ata da assembleia geral e da reunião do conselho de administração que autorizou a emissão, substituindo as expressões por uma referência ao “ato societário que alterar a emissão”. Assim, após as alterações da Lei 14.711/2023, as normas relativas ao registro do ato societário que autorizar a emissão e o arquivamento da escritura de emissão ficarão a cargo da CVM, para as emissões “objeto de oferta pública” (§ 5º), e do poder Executivo Federal, para as emissões de “debêntures de companhias fechadas” (§ 6º). (Observe-se a imprecisão da nova classificação legislativa, que não identifica claramente o regime aplicável às emissões privadas por companhias abertas.)

De igual modo, alterou-se o § 3º do art. 58 da Lei 6.404/1976, relativo às debêntures com garantia flutuante, cuja redação passou a ser a seguinte: “§ 3º As debêntures com garantia flutuante de nova emissão são preferidas pelas de emissão ou de emissões anteriores, e a prioridade se estabelece pela data do arquivamento do ato societário que deliberou sobre a emissão, concorrendo as séries, dentro da mesma emissão, em igualdade.”

Nesta alteração, chama atenção o fato de o Marco Legal das Garantias ter ajustado a redação do § 3º do art. 58 da Lei 6.404/1976 para referir-se ao ato societário de autorização da emissão, mas não ter aproveitado a oportunidade para alterar um outro aspecto do mesmo dispositivo muitíssimo mais relevante para a emissão de debêntures: o fato de que as debêntures com garantia flutuante foram revogadas pela Lei 14.112/2020, no que respeita à classificação do crédito na falência e na recuperação judicial.

Como se sabe, ao tratar das espécies de debêntures, o art. 58 da Lei 6.404/1976 empregou a expressão debêntures “com garantia flutuante” para designar debêntures que conferem créditos com privilégio creditório geral, conforme, aliás, explica o disposto no § 1º do art. 58. O emprego tanto da expressão “espécies”, para designar as preferências creditórias do crédito debenturístico, quanto da expressão “garantia flutuante”, para designar debêntures com privilégio geral, é dogmaticamente equivocado, pois, em direito brasileiro, preferências creditórias são chamadas preferências creditórias (veja-se, p. ex., os arts. 955 a 965 do Código Civil, que versam sobre as preferências e privilégios creditórios, ou o art. 908, § 2º, do CPC, que faz referência a títulos legais de preferência), e não “espécies” de créditos; e créditos com privilégio geral são chamados créditos com privilégio geral (veja-se, p. ex., o art. 961 do Código Civil), e não créditos com garantia flutuante, expressão que, além de atécnica, pois privilégios gerais não são garantias, remete indevidamente à noção de floating charge, que possui diversos outros significados no direito comparado.

Porém, a questão que quero suscitar aqui não é terminológica, embora a imprecisão terminológica seja um acentuado sintoma do problema. A questão central aqui é que a Lei 14.112/2020 revogou os incisos IV e V do art. 83 da Lei 11.101/2005, que previam as classes de créditos com privilégio especial e geral, e, ademais, incluiu no art. 83 o “§ 6º § 6º” (sic), de seguinte redação: “Para os fins do disposto nesta Lei, os créditos que disponham de privilégio especial ou geral em outras normas integrarão a classe dos créditos quirografários.”

Com efeito, a partir da Lei 14.112/2020, as emissões de debêntures com garantia flutuante, rectius, com privilégio geral, não outorgam crédito com privilégio geral na falência, mas crédito quirografário. Para além da terminologia caleidoscópica, ou melhor, como o próprio caráter caleidoscópico da terminologia denuncia, há uma absoluta aleatoriedade da evolução legislativa sobre as debêntures com privilégio geral.

O Marco Legal das Garantias, cujo nome indicava tratar-se de lei que versa sobre normas relativas a preferências creditórias, isto é, com normas que atribuem senioridade a posições jurídicas de crédito, alterou a estética do art. 58, para referir-se aos “atos societários de autorização de emissão”, mas deixou passar batido o fato de que o privilégio geral previsto no art. 58, §§ 1º e 3º, da Lei 6.404/1976, não existe mais em concurso de credores na falência e na recuperação judicial.

O fato é duplamente grave, mormente porque as diferentes técnicas legislativas sobre preferências creditórias criam diferentes patamares de preferência creditória, isto é, de senioridade, que é o parâmetro central adotado quando da análise do risco do crédito para a precificação do retorno a ser cobrado, no binômio risco-retorno, em operações de financiamento de companhias. Com a revogação das debêntures com privilégio geral, o direito brasileiro perde um dos patamares creditórios que poderiam ser adotados em operações de financiamento estruturado de empresas. Isto é, acrescenta-se no panorama institucional brasileiro mais uma pequena peça, que contribui para tornar o Brasil uma jurisdição high yield, nas quais as empresas pagam muito caro para se financiar com capital de terceiros.

Convém alertar-se o mercado da novidade legal e, também, o legislador, para que possa compreender o que está em jogo quando das próximas reformas legislativas.

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