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A reforma da falência: primeiras impressões sobre o PL 03/2024

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV. Advogado e parecerista.
CAVALLI, Cássio. A reforma da falência: primeiras impressões sobre o PL 03/2024. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 1, n. 28, p. 1-4, jan./2024. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em:

O Projeto de Lei 03/2024, proveniente de proposta de lei ordinária elaborada pelo Ministério da Fazenda e encaminhada ao Congresso Nacional em regime de urgência constitucional, propõe uma série de alterações na Lei 11.101/2005, notadamente no que respeita ao procedimento falimentar.

Como normalmente ocorre com projetos de lei, o PL não foi acompanhado de uma minuciosa exposição dos seus motivos, que permita à comunidade de intérpretes compreender o sentido das alterações legislativas e das escolhas feitas no projeto.

O PL 03/2024 foi acompanhado apenas por uma breve mensagem do Ministério da Fazenda, na qual, em síntese, apontou-se que o processo falimentar é moroso e ineficiente e que o PL pretende torná-lo mais célere e eficiente, mediante a criação de um plano de falências relativo à alienação de ativos e ao pagamento do passivo, a ser aprovado por deliberação da assembleia geral de credores e executado por um agente fiduciário dos credores.

Em linhas gerais, conforme a mensagem de encaminhamento, o PL pretende transformar a falência em um processo de liquidação negociada dos ativos do devedor, aproveitando-se “da experiência do processo de recuperação judicial atualmente em vigor.” Desse modo, o PL estrutura um procedimento de elaboração e deliberação de um “plano de falência”. Conforme destacou a mensagem de encaminhamento, “o texto proposto busca desestimular a ocorrência de disputas temerárias entre credores e incentivar o devedor e as classes de credores a cooperar na busca de soluções rápidas no processo falimentar.”

Neste artigo, eu analisarei apenas coerência interna de alguns poucos dispositivos contidos na proposta, no sentido de verificar se o procedimento de deliberação do plano de falência proposto é capaz de efetivamente promover a cooperação e diminui disputas entre credores.

Conforme o PL, o procedimento da falência estruturará uma negociação e deliberação acerca do plano de falência, o qual disporá sobre os procedimentos de realização dos ativos e pagamento dos credores.

De uma perspectiva geral, há uma falha de concepção no PL que já se encontra no texto vigente da Lei 11.101/2005. Conceitualmente, qualquer negociação coletiva deve ser feita tendo como pano de fundo uma clara organização de direitos patrimoniais em caso de uma execução não negociada dos créditos na falência. Isto é, primeiro se deve organizar minuciosamente como o ativo será realizado e como os credores serão pagos caso não haja uma negociação coletiva entre os credores. Somente a partir das posições relativas dos credores na execução coletiva forçada é que os credores poderão avaliar alternativas negociais para a satisfação de seus créditos.

A Lei 11.101/2005 vigente não organiza de modo coerente a execução forçada. Pelo contrário, suas disposições são caleidoscópicas e erodem as técnicas de organização dos credores em concurso. Veja-se, por exemplo, a teratologia do tratamento dado aos credores com garantia real pela redação vigente da Lei 11.101/2005.

Sem corrigir e estruturar adequadamente a execução forçada, caem no vazio algumas das disposições do PL, como a do art. 82-C, § 4º, I e II, que busca introduzir uma regra de prioridade absoluta no direito brasileiro. Não é operacionalizável uma regra de prioridade absoluta com proteção contra superação de veto e imposição judicial de plano (i.é, proteção contra cram down) sem uma clara disciplina da ordem de pagamento de credores.

Vejamos o procedimento de elaboração e deliberação do plano de falência.

O plano de falência deverá ser elaborado pelo administrador judicial ou pelo gestor fiduciário (que é o nome que o PL dá ao administrador judicial eleito pelos credores), conforme o art. 82-C.

Se houver objeção de credores que representem ao menos 15% do total de créditos estimados pelo administrador judicial no plano de falência, será convocada uma assembleia geral para deliberar sobre o plano (art. 82-D, caput e § 2º). Do contrário, o plano será considerado aprovado e será homologado e executado (§ 1º).

O total de créditos estimados no plano inclui a “relação de credores, prevista no § 2º do art. 7º, classificados de acordo com o disposto nos art. 83 e art. 84” (art. 82-C, § 3º, II). Aqui há uma incoerência deste dispositivo e de outros que incluem na relação de credores concursais os créditos a que alude o art. 84. Por este dispositivo, o administrador judicial, que apresentou o plano, também vota no próprio plano. O equívoco do PL em igualar créditos concursais (art. 83) aos créditos extraconcursais (art. 84) já se encontra na atual redação da Lei 11.101/2005 e é grave erro de concepção sobre as técnicas de classificação e organização de credores em concurso que precisa ser corrigida (e que o PL não corrigiu). A técnica correta e mundialmente utilizada de organização do concurso é separar os credores concursais em credores com garantia real, credores com privilégio especial e geral, credores quirografários e credores subordinados; e os credores não concursais são despesas administrativas do concurso, os antigos encargos e despesas da massa. Não me refiro apenas à terminologia, mas sobretudo ao significado técnico e funcional preciso de cada um destes termos, que são perdidos e embaralhados na lei atual e corroem toda e qualquer tentativa de organizar o concurso e estruturar uma negociação coletiva, inclusive a que o PL tenta estruturar.

Ao prever que somente haverá AGC se houver objeções perfazendo 15% do total de créditos (art. 82-D, caput e § 2º), sendo o plano considerado aprovado em caso de não se atingir o percentual de objeções (§ 1º), o PL autoriza situações de violação não consentida da ordem de pagamento de credores. Por exemplo, se o passivo total é de R$ 1 bilhão e há um financiador DIP com crédito de R$ 100 milhões, se o plano inverter ordens de pagamento, colocando o financiador DIP para o fim da fila, o plano será considerado aprovado por ausência de 15% de objeções e será homologado. O financiador evidentemente litigará contra esse plano, o que comprova que o PL não traz disposições que evitam contencioso e promovem cooperação entre os credores. Em outras palavras, há características do PL que não promovem eficiência ex post do procedimento. Mais do que isso, a previsão do PL sobre objeção de no mínimo 15% de créditos acarreta um efeito ex ante sobre financiamentos DIP. Ninguém financiará empresas em recuperação judicial a menos que tenha certeza de que o valor do financiamento corresponde a muito mais do que 15% do total do passivo do devedor, pois saberá que, do contrário, na falência, poderá perder a preferência de pagamento de seu crédito. Noutras palavras, o PL possui certas características que promovem ineficiência ex ante, de que apenas é um exemplo o impacto sobre o financiamento das empresas em recuperação judicial.

Conforme o § 3º do art. 82-D, “o plano de falência será aprovado por todas as classes de crédito de que tratam os incisos I a IX do caput do art. 83 e os incisos I-A a V do caput do art. 84”.  Além de misturar despesas administrativas com créditos concursais ao atribuir direitos políticos de participação na deliberação do plano, o que é um equívoco, o PL inviabiliza esta deliberação e promove litigiosidade e não-cooperação, pela seguinte razão específica. O PL organiza a deliberação dos credores por classes. Por exemplo, a classe dos credores com garantia real (que o art. 83, II, em vigor se refere mediante teratológica expressão) reúne créditos com garantia real até o valor do bem onerado em garantia. Portanto, para se determinanr a porção do crédito incluído na classe II do art. 83, deve-se saber o valor do bem dado em garantia. Como este bem será vendido em momento posterior, deve-se avaliá-lo. Porém, o próprio PL revoga o art. 108, § 5º, da LRF, que prevê a avaliação do bem onerado em garantia real no momento da arrecadação. Desse modo, não se saberá o valor do  bem, nem mesmo por estimativa obtida em avaliação, quando da assembleia que deliberará sobre o plano de falência. Logo, não se terá como se formar uma classe de credores com garantias reais, nem verificar o poder de voto ou de veto de cada credor com garantia real. Com isso, inviabiliza-se a operacionalização da deliberação de um plano de falência em assembleia de credores e, também, da regra de prioridade absoluta aludida no art. 82-D, § 4º, do PL, além de incentivar-se comportamentos não-cooperativos pelos credores, litigiosidade e morosidade.

As breves ponderações feitas acima buscam demonstrar que o PL deve ser aprimorado em sua tramitação legislativa. A intuição geral do PL, de atribuir um papel mais ativo aos credores na falência, estruturando deliberações coletivas, é muito boa e deve ser perseguida pelo legislador. Porém, para que possa funcionar na prática, deve ser acompanhada de uma clara reforma que organize o procedimento de execução forçada (ou não negociada) da falência, com a organização correta das classes de credores e a adoção de técnicas adequadas para estruturar uma negociação coletiva. Sem isso, a boa intenção do PL será frustrada.

De Chicago para São Paulo, 20 de janeiro de 2024.

Cássio Cavalli

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