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A morte das garantias reais e o PL 03/2024: uma carta ao Ministério da Fazenda e ao Congresso Nacional

Cássio Cavalli
Cássio Cavalli
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Cássio Cavalli. Professor da FGV Direito SP. Advogado e parecerista.
CAVALLI, Cássio. A morte das garantias reais e o PL 03/2024: uma carta ao Ministério da Fazenda e ao Congresso Nacional. Agenda Recuperacional. São Paulo. v. 2, n. 37, p. 1-3, jan./2024. Disponível em: www.agendarecuperacional.com.br. Acesso em:

Em meio a reiterados esforços legislativos para aprimorar os direitos reais de garantia, com promulgação do Marco das Garantias e a tramitação de inúmeros outros projetos, chama atenção que nenhum desses projetos, inclusive o PL 03/2024, tenha adotado iniciativa para ressuscitar os desfalecidos direitos reais de garantia naquilo que lhes é mais essencial, após terem sido abrogados da legislação brasileira ao longo das últimas várias décadas.

Sim, é isso mesmo que o leitor leu: atualmente, no direito brasileiro, o penhor, a hipoteca e a anticrese, de “direitos reais” conservam só o nome e não são mais direitos reais de garantia. 

O penhor, hipoteca e anticrese, ainda hoje previstos no art. 1.225, XIII, IX e X, do Código Civil, são intrusos no rol de direitos reais, pois são espécies mutiladas nas suas características essenciais que os tornavam direitos reais. Hoje, habitam o limbo dos direitos reais, à espera de um enterro digno pela revogação formal da sua inclusão no rol de direitos reais. Ou de um resgate legislativo que reestabeleça sua dignidade normativa.

Como eu chamei atenção em recentes comentários ao art. 58 da Lei das SA (na obra Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, coordenada por Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Revista dos Tribunais, 2024), direitos reais, por definição, inclusive os que chamávamos de direitos reais de garantia, são direitos oponíveis erga omnes. O penhor, a hipoteca e a anticrese perderam esta característica e constituem apenas direitos relativos, oponíveis relativamente a certos sujeitos.

Afinal, os chamados direitos reais de garantia serviam para vincular, por ônus real, o valor de excussão de um bem à satisfação de um crédito (lê-se no também morto-vivo art. 1.419 do Código Civil). Ou seja, retiravam este valor do patrimônio do devedor e o atribuíam ao patrimônio do credor, que poderia opor este seu direito real contra todos (erga omnes) os demais credores e acionistas do devedor. 

A oponibilidade do direito real de garantia ocorria em concurso, especial ou universal, de credores. O credor com garantia real poderia opor seu direito a todos os demais credores do devedor comum, de modo a se apropriar do valor de excussão do bem onerado até o valor de seu crédito. Noutras palavras, os direitos reais ganhavam vida em procedimentos concursais que assegurava a preferência creditória sobre o valor de excussão do bem onerado. Afinal, a todo o direito corresponde uma ação, que o assegura, conforme se lia no art. 75 do Código Civil de 1916. De fato, direito desprovido de ação que possa assegurá-lo é direito inerte, sem vida, incapaz de desempenhar a função para a qual foi concebido. Foi o quanto se passou com os direitos reais de garantia, que não mais encontram no ordenamento jurídico brasileiro ações que os assegurem.

A destruição da tutela processual dos direitos reais de garantia encontrou sua primeira centelha em um dispositivo do Código Civil de 1916 sobre penhor de safra que rapidamente se espalhou pelo ordenamento brasileiro impulsionada pela voracidade da fazenda nacional aliada ao populismo legislativo trabalhista. Assim, foram promulgadas leis que subtraíram a possibilidade de o direito real de garantia ser oposto a credores trabalhistas, tributários e alguns outros reunidos em concurso. Isto é, deformaram os créditos com garantia real e os transformam em meros créditos com um misto de privilégio geral e especial. 

Esta mutilação dos direitos reais de garantia foi mais um dos graves equívocos que o direito brasileiro decidiu trilhar. Custou caro ao nosso desenvolvimento.

Não deveria ser necessário, mas infelizmente é, ter que lembrar o que significa a adoção de uma economia capitalista pelo Brasil. No regime capitalista, a primeira etapa de produção consiste na reunião de capital, próprio ou de terceiros. A partir daí é que são contratados empregados e praticados atos que geram tributos, os quais serão pagos com o capital obtido ao fim do processo produtivo. Ao destruir os direitos reais de garantia, o Brasil dificulta a reunião de capitais de terceiros para alavancar a produção e o desenvolvimento econômico. Financiar-se com capital alheio custa caro no Brasil. Quem sofre as consequências somos todos nós, brasileiros, inclusive a arrecadação de impostos e a classe trabalhadora. Veja que esta também é uma das consequências ex ante da deficiente disciplina original da Lei 11.101/2005, que jogou uma pá de cal sobre os agonizantes direitos reais de garantia. (Sobre este capítulo da história, ver aqui no Agenda Recuperacional o artigo “A prioridade do crédito garantido na Lei 11.101/2005 e os limites da mens legislatoris”.)

Outra consequência ex ante da asfixia dos direitos reais de garantia no Brasil foi a Gol escolher pedir recuperação judicial nos EUA, não no Brasil. Na prática financeira internacional, os direitos reais de garantia desempenham uma relevantíssima função em arranjos de financiamento de empresas, inclusive no financiamento da empresa em recuperação judicial. Como no Brasil foram revogados os direitos reais de garantia, o capital global prefere recorrer a outras jurisdições para reger os empréstimos que faz. Não é possível legislar sobre financiamento de empresas em recuperação judicial no padrão globalmente preferido sem que se discipline corretamente os direitos reais de garantia.

Seria de se esperar iniciativas dos governos brasileiros para efetivamente resgatar os direitos reais de garantia do limbo em que foram colocados. Só que não. A Lei 14.112/2020 chegou ao paroxismo teratológico de denominar no art. 83, II, os créditos garantidos por direito real de garantia de “créditos gravados com direito real de garantia”. Que importa o emprego da teratológica expressão, grosseiramente incorreta tanto gramatical quanto juridicamente, se os direitos reais de garantia já estão mortos mesmo?

O PL 03/2024 também dá a sua contribuição para o enterro dos direitos reais de garantia ao suprimir na falência a obrigatoriedade de avaliação de bens onerados em garantia real, em mais um exemplo de norma procedimental que inviabiliza a tutela dos direitos reais de garantia. A avaliação de bens onerados em garantia é um ato procedimental fundamental para a tutela dos créditos com garantia real em um sem número de situações falimentares e recuperacionais.

Se o objetivo for aniquilar os direitos reais de garantia, que ao menos seja com a misericórdia do gesto breve e resoluto de se aprovar uma lei que revogue o art. 1.225, XIII, IX e X, e o art. 1.419 do Código Civil. Será melhor para o direito brasileiro, que já conta com os substitutos funcionais da alienação fiduciária em garantia. Pior é ficar com um direito “real” morto-vivo, sem dentes, que apenas tisna a reputação do direito brasileiro, percebido como um direito que não tutela adequadamente financiadores e que, por isso, torna o Brasil uma jurisdição high yield.

Ou que se restaure a dignidade dos direitos reais de garantia, pela promulgação de leis procedimentais que assegurem aos direitos reais as ferramentas necessárias para que possam desempenhar efetivamente a sua função.

De Nova Iorque para São Paulo, 28 de janeiro de 2024.

Cássio Cavalli

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